PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL FEDERAL
RECDO.(A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
EMENTA PARA
CITAÇÃO: CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS POR
INCAPACIDADE. PRAZO
DE REALIZAÇÃO DAS PERÍCIAS PELO INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. IMPOSIÇÃO
JUDICIAL DE REALIZAÇÃO EM ATÉ 45 DIAS, SOB PENA DA IMPLEMENTAÇÃO AUTOMÁTICA DA
PRESTAÇÃO REQUERIDA PELO SEGURADO. LIMITES DA INGERÊNCIA DO PODER
JUDICIÁRIO EM POLÍTICAS PÚBLICAS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
1. Revela especial relevância, na
forma do art. 102, § 3º, da Constituição, a questão acerca da possibilidade de
o Poder Judiciário (i) estabelecer prazo para o Instituto Nacional do Seguro
Social realizar perícia médica nos segurados da Previdência Social e (ii)
determinar a implantação do benefício previdenciário postulado, caso o exame
não ocorra no prazo.
2. Repercussão geral da matéria
reconhecida, nos termos do art. 1.035 do CPC.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade,
reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a
existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada.
Ministro ALEXANDRE DE MORAES
Relator
REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
1.171.152 SANTA CATARINA
Título do tema: possibilidade de o Poder Judiciário (i) estabelecer prazo
para o Instituto Nacional do Seguro Social realizar perícia médica nos
segurados da Previdência Social e (ii) determinar a implantação do benefício
previdenciário postulado, caso o exame não ocorra no prazo.
MANIFESTAÇÃO
O Senhor Ministro Alexandre de Moraes (Relator):
Trata-se de Recurso Extraordinário interposto pelo
Instituto Nacional do Seguro Social contra acórdão do Tribunal Regional Federal
da 4ª Região em ação civil pública.
Na origem, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em
face da autarquia previdenciária com o seguinte objeto:
“Pretende-se,
com a presente Ação Civil Pública, garantir a todos os beneficiários da previdência e da assistência
social que dependam da avaliação da incapacidade para fins de concessão de
benefícios (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte a
incapazes e benefício assistencial de prestação continuada às pessoas com
deficiência) o direito coletivo à realização da perícia em prazo razoável,
bem como à concessão
provisória do benefício até a realização da perícia, caso
ultrapassado o prazo, como medida de inversão do ônus material decorrente da
demora excessiva que representa ofensa aos preceitos da eficiência, adequação e
continuidade que orientam o serviço público.”
Eis o pedido formulado pelo Parquet:
“Ao
final, após regularmente processada a demanda, o Ministério Público Federal
pede seja julgada totalmente procedente a presente ação, confirmando-se a
antecipação de tutela, para condenar o INSS, com efeitos no Estado de Santa
Catarina, à:
a)
realização das perícias necessárias à concessão de benefícios previdenciários e
assistenciais no prazo máximo de 15 (quinze) dias a contar do requerimento do
benefício e,
a.1) caso
ultrapassado o prazo, seja concedido provisoriamente o benefício, amparado no
atestado do médico assistente que instruiu o pedido administrativo, até a
realização da perícia. Constatado o excesso de prazo já no agendamento, seja
imediatamente concedido o benefício provisório, nos mesmos termos;
a.2)
subsidiariamente ao item “a.1” (não sendo ele reconhecido, o que se admite apenas
ao sabor do argumento), caso ultrapassado o prazo, seja fixada multa diária, em
relação a cada pedido não submetido a perícia, até sua efetiva realização,
valor a ser revertido em favor do fundo previsto no art. 13 da Lei nº 7.347/85;”
A liminar foi deferida, nos seguintes termos:
“Ante o exposto, DEFIRO O PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA para
determinar ao Instituto Nacional do Seguro Social - INSS:
a) realização das perícias necessárias à concessão de
benefícios previdenciários e assistenciais no prazo máximo de 15 (quinze) dias,
a contar do requerimento do benefício.
b) não sendo observado o prazo
referido no item supra, sejam os benefícios provisoriamente concedidos ou
mantidos até que seja o segurado/beneficiário submetido à perícia médica para
avaliação da sua condição de incapacidade, amparado em atestado médico, cuja
apresentação deve ser exigida do segurado no momento da formulação ou da
renovação do benefício.
c) não sendo observado o prazo
referido no item 'a' já no momento do agendamento eletrônico, sejam os
benefícios provisoriamente concedidos, amparado em atestado médico, cuja
apresentação deve ser exigida do segurado/beneficiário no momento do
requerimento do benefício.
Ressalto, todavia, a apresentação do laudo médico particular
não elide a necessidade do beneficiário de se submeter à perícia do Instituto
Nacional do Seguro Social - INSS na data agendada pela autarquia.
Pelo descumprimento da decisão liminar, fixo a multa de R$
1.000,00 (mil reais), para cada beneficiário desta decisão que,
comprovadamente, tiver seu direito negado, a ser executado nestes autos.”
Ao proferir a sentença, o Juízo confirmou a medida liminar e
julgou procedente o
pedido inicial.
Quanto à eficácia espacial do provimento jurisdicional,
promoveu a ampliação de seus limites territoriais, nos seguintes termos:
“Com efeito, melhor refletindo sobre a questão, tendo em conta
a decisão supratranscrita, entendo pertinente a extensão dos efeitos das
decisões proferidas nessa ação civil pública, inclusive a presente sentença,
para todo o Estado de Santa Catarina.
Pretendendo o Ministério Público Federal que seja o Instituto Nacional do
Seguro Social - INSS condenado a realizar as perícias médicas no prazo máximo
de 15 (quinze) dias, condicionando o desatendimento desse prazo
à concessão
provisória do benefício almejado até a realização da perícia
oficial, mostra-se razoável que, se concedida a ordem requestada, sejam
unificados os procedimentos e as medidas engendradas ao seu atendimento,
permitindo à autarquia previdenciária a gestão única do cumprimento da decisão
judicial e das medidas administrativas que através da mesma se poderá impor.
Sendo assim, atribuo à presente ação civil pública abrangência
estadual, estendendo as decisões proferidas a todos os segurados residentes no
Estado de Santa Catarina que venham requerer a concessão de benefícios sujeitos
à avaliação por perícia médica nas Agências da Previdência Social localizadas
no território catarinense.”
Examinando a remessa oficial e a
apelação do INSS, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região acolheu-as em parte,
para
(a) excluir do alcance da decisão os
benefícios acidentários;
(b) “fixar o prazo máximo de 45 dias
para realização das perícias médicas, sob pena de implantação automática do
benefício previdenciário requerido, com a possibilidade de utilização do
sistema de credenciamento temporário de peritos médicos.” e
(c) excluir
a fixação de multa. Eis a ementa do julgado:
“EMENTA PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRAZO PARA REALIZAÇÃO DE
PERÍCIAS PARA ANÁLISE DE PEDIDOS DE BENEFÍCIO POR INVALIDEZ. IMPLANTAÇÃO
AUTOMÁTICA DO BENEFÍCIO SE NÃO REALIZADA A PERÍCIA EM 45 DIAS. CREDENCIAMENTO
DE PERITOS TEMPORÁRIOS. PRELIMINARES. ABRANGÊNCIA TERRITORIAL. ESTADO DE SANTA
CATARINA. EXCLUSÃO DOS BENEFÍCIOS ACIDENTÁRIOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
ESTADUAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.
1. Legitimidade: o
Ministério Público Federal é parte legitima para propor ação civil pública em
defesa de direito individuais homogêneos em matéria previdenciária.
2. Competência Territorial em Ação Civil Pública: a regra
geral do art. 16 da Lei n. 7.347/85, limitando a coisa julgada à competência
territorial do órgão prolator admite exceções, se a matéria debatida no feito
transborde os perímetros da circunscrição territorial do órgão prolator da
decisão. No caso em tela, a natureza do pedido é das perícias médicas junto ao
INSS não é isolado de um ou outro posto de atendimento, mas sim de quase
totalidade da rede de atendimento no Estado de Santa Catarina. A jurisprudência
mais coerente já aponta a ampliação territorial, inclusive porque o ideal,
nesses casos, seria a ampliação da competência em âmbito nacional. incompatível
com a restrição imposta pela norma geral, uma vez que o atraso na realização.
3. Omissão
Administrativa: o mandado de injunção consiste em remédio
constitucional para suprir lacunas de lei dirigidas à concretização de direitos
previstos na Carta Magna. No caso em tela, o autor não defende haver
propriamente uma omissão legislativa, mas uma omissão da Administração em
cumprir norma procedimental presente no sistema.
4. Competência Estadual para Acidente de Trabalho: embora
a presente ação dirija-se para a correção de uma falha procedimental, em caso
de descumprimento do prazo, a consequência imposta é a implantação de um
benefício previdenciário. Portanto, há cunho previdenciário na demanda e, por
consequência, merece observância da norma de competência prevista no inciso I
do art. 109 da CF/88, excluindo-se do provimento desta ação os benefícios
decorrentes de acidente do trabalho em respeito à competência da Justiça
Estadual.
5. Prazo Razoável para Realização de Perícias: o § 5º
do art. 41-A da Lei de Benefícios, incluído pela Lei n.º 11.665/08, prevê que o
primeiro pagamento do benefício será efetuado até 45 (quarenta e cinco) dias
após a data da apresentação, pelo segurado, da documentação necessária a sua
concessão. Assim, merece trânsito o pedido de implantação automática do
benefício, em 45 dias, a contar da entrada do requerimento, se não realizada a
necessária perícia médica para comprovação da incapacidade. Tal provimento não
implica ofensa ao Princípio da Separação dos Poderes, mas determinação judicial
baseada em norma legal, com a finalidade de garantir a concretização de direito
fundamental. Precedentes deste TRF4.
6.
Credenciamento Excepcional de Peritos: a autorização de
contratação de médicos peritos temporários para auxílio na redução do prazo
médio de realização de perícias, consiste em instrumento complementar a melhor
gestão do poder público, a ser utilizada de forma razoável e proporcionalmente
às necessidades. Esse comando jurisdicional respeita a autonomia administrativa
e o Princípio da Separação dos Poderes, visto que a contratação obedece a real
necessidade a ser avaliada pela instituição previdenciária, bem como pode ser
evitada com a adoção de melhoria na gestão dos recursos humanos e materiais
existentes.
7. Ratificação de Tutela Antecipada: quando,
no curso da ação, o cumprimento de medida liminar demonstra o acerto e
ajustamento do pedido, mesmo que parcial, com melhora efetiva do serviço
público prestado, o julgamento de mérito deve prestigiar a solução jurídica
conferida em antecipação de tutela pelo Tribunal.”
No recurso extraordinário, interposto com
base no art. 102, III, a da Constituição, o INSS sustenta que o acórdão
perpetrou as seguintes ofensas a dispositivos constitucionais:
a) art. 5º,
XXXV, LIV e LV, pois o aresto padece de deficiência de fundamentação;
b) art. 127
e 129, III, pois o Ministério Público não tem legitimidade para propor a
presente ação civil pública, na qual se tutelam direitos individuais e
disponíveis;
c) art. 97,
pois deixou de aplicar o art. 16 da Lei 7.347/1985 sem seguir o procedimento de
reserva de Plenário;
d) art. 2º,
pois a ordem para as perícias serem realizadas em 45 dias, sob pena de
implantação automática do benefício, ofende o princípio da separação de
Poderes, já que cabe privativamente à Administração gerir, organizar e
estruturar o atendimento aos segurados da Previdência Social;
e) arts.
5º, II, 37, caput, e 201, caput, que consagram o princípio da legalidade, o
qual foi abertamente desconsiderado pelo julgado, visto que “a concessão automática de
benefício por incapacidade, sem qualquer perícia, é ato
absolutamente ilícito, pois, à luz dos arts. 16, I e III, 21-A, 41- A, § 5º,
43, §1º, 60, §4º, 77, §2 , III, da Lei n 8.213/91; 20, §6º, da Lei n 8.742/93;
artigos 2º da Lei 10.876/2004 e artigo 30, §3º, da Lei 11.907/2009, não há
qualquer possibilidade de concessão desses benefícios sem que haja perícia prévia
para aferir o grau de incapacidade do segurado”;
Assevera que o acórdão recorrido
procedeu à incorreta interpretação dos princípios da eficiência, da
razoabilidade e da dignidade da pessoa humana.
Quanto à repercussão geral dessas
questões, assim se manifestou a autarquia:
“d) repercussão geral
Toda Ação Civil Pública possui repercussão que vai muito além
dos efeitos que teria uma ação individual, assim, a tutela antecipada
eventualmente deferida em seu bojo igualmente está eivada de tal relevância.
Some-se a isso o fato de tratar-se de Ação Civil Pública pela
qual o Ministério Público Federal busca a condenação do INSS (entidade de
âmbito nacional) a conceder
benefícios previdenciários de forma automática, sem a realização de
perícia médica oficial, quando o agendamento de tal ato administrativo for
marcado para momento posterior ao 45º dia da data em que requerido o benefício,
para um número indeterminado de pessoas residentes no Estado de Santa Catarina,
o que indica a existência de repercussão social e econômica por si só,
considerando o volume de segurados do RGPS abrangidos por tal estado.
Além disso, há repercussão geral por envolver a definição de
direitos de segurados do RGPS ao gozo de benefício previdenciário de cunho
incapacitante, sem a atenção aos requisitos legais pertinentes para tanto, o
que indica que o regime de previdência social restará afetado com a extensão
indevida de benefícios para aqueles que não estão demonstrando previamente a
condição de incapacidade laboral.
Trata-se, portanto, de caso típico em que a decisão do STF
terá repercussão geral,
ou seja, para muito além do caso concreto.
As questões de mérito discutidas no caso também possuem
repercussão geral pelo fato notório de que existe um agendamento prévio de
perícias médicas realizada por toda e qualquer Agência da Previdência Social
que é elaborado de acordo com as peculiaridades locais, o que indica que a data
de marcação de tal evento médico realizado pelo INSS não pode ser controlado de
forma objetiva com a limitação em 45 dias, caso contrário possível a concessão
automática de benefício, o que indica que existe repercussão social e econômica
de relevo apta a dar ensejo no conhecimento de mérito da presente demanda,
conforme será a seguir delineado.”
O Tribunal Regional Federal da 4ª
Região admitiu o apelo extremo.
Por meio de decisão publicada em
16/11/2018, neguei seguimento ao recurso extraordinário.
Apresentado agravo interno pela
autarquia, reconsiderei a decisão para melhor examinar a matéria.
É o relatório.
No § 3º do art. 102 da
Constituição, estabelece-se que, “no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar
a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos
da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo
recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
(grifo nosso)
Não obstante a clareza da norma,
a exigir que o recorrente exponha a justificativa da relevância de cada uma das diferentes
questões suscitadas no apelo extremo, neste caso concreto, o INSS
destacou a importância de apenas um ponto do recurso: a ordem judicial para
realizar as perícias em 45 dias, sob pena de implementação automática do
benefício.
Saliente-se que o presente
recurso extraordinário rege-se pelo anterior Código de Processo Civil, no qual
se exigia a demonstração da repercussão geral em preliminar do recurso (art.
543-A, § 2º). Portanto, frases e palavras porventura encontradas ao longo da
peça recursal não podem ser considerados como fundamentos válidos sobre a
relevância dos demais temas.
Considerando-se que, em
preliminar, o recorrente abordou unicamente o tema do prazo para as perícias,
esta manifestação a ele se restringirá.
É superlativa a relevância de tal
questão. Em jogo, (I) os limites à atuação do Poder Judiciário em matéria de
políticas públicas e (II) a possibilidade de a decisão judicial gerar efeitos
financeiros de grandes proporções, em face da inércia da autarquia previdenciária
em fazer as perícias em até 45 dias.
A questão da ingerência do Poder
Judiciário nos domínios da Administração Pública já considerada de especial
relevância pelo Plenário desta CORTE nos REs 887671 (Definição dos limites à atuação
do Poder Judiciário quanto ao preenchimento de cargo de defensor público em
localidades desamparadas) e 684612 (Limites do Poder Judiciário para
determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes na realização de
concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o
direito social da saúde, ao qual a Constituição da República garante especial
proteção).
No presente caso, destaca-se a
questão do acentuado impacto da decisão judicial para as finanças públicas. Com
efeito, a implantação automática de milhares de benefícios previdenciários, em
curto período de tempo, traz em si repercussão econômica imensa para o Poder
Executivo.
Sobreleva discutir a legitimidade
de tais ordens judiciais, sem que haja específica e prévia dotação orçamentária
para atendê-las.
Conforme aponta Andréa Magalhães,
“ao avaliar se as
políticas públicas atendem aos fins constitucionais, as cortes constitucionais
(re) distribuem os custos envolvidos na concessão de cada direito, o que, em um
contexto de escassez, impõe aos poderes uma adaptação da alocação de recursos
públicos também em outras políticas” (Jurisprudência da
Crise: uma perspectiva pragmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017).
A observação indica uma
verdadeira interferência, na elaboração do orçamento público, de Poder (o
Judiciário) ao qual a Constituição não cometeu tal atribuição.
O tema proporciona intensos
debates, não apenas no Brasil. Vale trazer à colação a exposição feita por Jair
Marocco, abordando os desdobramentos na Itália e em Portugal:
“2. Discussão na Itália acerca das sentenças aditivas
de prestação e as controvérsias de ordem financeira. Da Sentença aditiva de
prestação à sentença aditiva de princípio: mecanismo de minorar as
consequências financeiras no intervento da Corte Constitucional .
A Sentenza additiva é modalidade empregada pela Corte
Constitucional com uma finalidade específica, que é a superação da omissão
legislativa inconstitucional. Censura-se uma disposição não por algo que ela
prevê, mas sim pelo fato de omitir algo que deveria, constitucionalmente, estar
previsto.
Como destaca Alessandro Pizzorusso, trata-se de importante
papel (alternativo ao que caberia ao Parlamento) de "adequação do
ordenamento positivo aos princípios constitucionais".
(...)
4 Isso é, precisamente, o que
ocorre na sentença aditiva: acrescenta-se um conteúdo antes inexistente na lei;
utiliza-se da técnica quando a disposição tem valor normativo menor do que se
espera constitucionalmente e declara-se a inconstitucionalidade "nella
parte in cui non" se se prevê algo que deveria conter.
Diz-se sentença aditiva de prestação quando, nos casos de
concessão legislativa de benefício social em violação ao princípio da igualdade
(art. 3.º da Constituição italiana), a Corte italiana estende a prestação
social à parcela inconstitucionalmente tolhida (fala-se, aqui, em sentenze
additive de prestazione). Insere-se, pois, no rol das "sentenças
que custam" (ao contrário das sentenças aditivas de garantia, em que a
solução não decorre no dispêndio de valores orçamentários).
5 Na sentença 1.º de 1991, a
Corte, mesmo reconhecendo que a atividade legislativa implica certa
discricionariedade, assentou que é essencial que essa se passe de modo a
respeitar os cânones da racionalidade e razoabilidade, estendendo-se, daí, e a
partir da isonomia, o benefício previdenciário à parcela de sujeitos excluídos
pela norma.
Ocorre que tais decisões aditivas de prestações adentram em
outro problema consistente nas implicações orçamentárias a fazer frente à
despesa, principalmente quando se tem em vista o art. 81.4 da Constituição
italiana, que exige fonte de recurso obrigatória para assunção de novas
despesas públicas (Ogni altra legge che importi nuove o maggiori spese
deve indicare i mezzi per farvi fronte).
A questão rendeu interessante debate na doutrina italiana
acerca da possibilidade de tais sentenças determinarem custos sem um
correspondente ingresso financeiro para fazer frente à nova despesa. Alguns
defendiam a inadmissibilidade da aditiva de prestação, uma vez que não
respeitariam o princípio da prévia cobertura financeira; outros opinavam que o
artigo não se dirigiria ao judiciário, mas sim ao legislador; outros, ainda,
defendiam soluções intermediárias, como a fórmula tedesca da declaração de
inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade. Augusto Cerri expõe que um
remédio poderia consistir na previsão, na legislação financeira, de algum
tributo com alíquota elevável por ato do governo, quando novas despesas fossem
ocasionadas por efeito de decisões judiciais - e que isso responsabilizaria a
própria Corte e juízes sem influência no seu labor interpretativo.
7 Pela práxis da Corte, no
entanto, essa viria a admitir que o art. 81 não seria um limite direto à
capacidade para ditar sentenças aditivas de prestação, embora devesse se
considerar o equilíbrio financeiro como um valor constitucional importante a
ser levado em conta no controle de constitucionalidade.
8 Mais recentemente, porém, a
Corte viria a mudar tal esquema decisório. Como informa Gaetano Silvestri, os
difíceis problemas de ordem financeira e os encargos decorrentes da solução
aditiva de prestação, especialmente em período de crise financeira e déficit
nas contas públicas, ocasionou progressiva diminuição desse tipo de tutela -
não sendo poucos os que apontam como uma das causas fundamentais a constante
intervenção da jurisdição constitucional na concessão de sentenças aditivas de
prestação.
9 Essa situação é particularmente
agravada porque, ao contrário do Brasil, não existe, na Itália, um sistema de
pagamento via precatório (art.100 da CF/1988), além do que as decisões do
Tribunal, tal como prevê o art. 136.1 da Constituição italiana, têm efeitos no
dia seguinte à publicação da decisão.
Após a reação negativa da Sentença 264, de 1994, as decisões
que custam foram substituídas paulatinamente por sentenças aditivas de
princípio (sentenze additive di princípio).
10 Essa sentença é forma
intermediária à aditiva de prestação na medida em que, visando escapar dos
nefastos efeitos financeiros e do desequilíbrio orçamentário proveniente da
intervenção judicial direta (e com efeitos imediatos), ao invés de colmatar
diretamente a lacuna constatada, estendendo o benefício social questionado,
indica, na decisão, os princípios gerais envolvidos - pronúncia através da qual
se remete ao legislador a possibilidade de corrigir a omissão, oferecendo ao
mesmo uma espécie de roteiro; ao mesmo tempo, permite-se aos juízes ordinários,
a partir das linhas gerais da decisão, resolver os casos concretos que lhe são
submetidos (a despeito da omissão constatada).
(consta assim no original) 3. A
discussão em Portugal: a controvertida modulação dos efeitos temporais da
declaração de inconstitucionalidade em razão de questões financeiras - o
acórdão da crise (352 de 2012).
Questão que merece atenção é a do Acórdão 353/2012 do Tribunal
Constitucional português.
A Constituição portuguesa (CP) prevê como regra geral que a
declaração de constitucionalidade, fruto do controle abstrato de
constitucionalidade, terá "força obrigatória geral produz efeitos desde a
entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a
repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado" (art.
282.1 da Constituição portuguesa). A decisão, portanto, comporta eficácia
retroativa (ex tunc), consagrando à Constituição portuguesa a regra da
sanção por nulidade da lei inconstitucional, bem como determinando a
repristinação de eventual norma revogada.
Não obstante o ponto acima mencionado, a mesma Constituição
portuguesa prevê uma exceção ao efeito retroativo da decisão de
inconstitucionalidade, tal como se vê no art. 282.4: “Quando a segurança
jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que
deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os
efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do
que o previsto nos n. 1 e 2.”.
Como se vê, é possível que a decisão tenha "alcance mais
restrito" se razões de tomo, como segurança jurídica, equidade ou
interesse de excepcional relevo, assim o permitirem. Foge-se, assim, da
consequência rígida da fórmula inconstitucionalidade x nulidade, permitindo-se
opções que levem em conta fatores de relevo jurídico.
(...)
14 O autor observa, no entanto, que
essa possibilidade "de efeitos mais restritos" permitidos pelo art.
282.4 da Constituição portuguesa comporta apenas a declaração com efeitos
prospectivos (ex nunc), o que representa uma nulidade parcial, além de
possibilitar que não haja efeitos repristinatórios. Nesse sentido, rechaça
outras modalidades de conteúdos “intermediários” que fujam dos efeitos acima.
Essa posição doutrinária - no sentido de que o art. 282.4
permitiria apenas declaração com eficácia ex nunc (rechaçandose eventual
efeito pro futuro, isto é, adiando-se a data em que a decisão surta efeitos) -,
em Portugal, é de notável alcance, tendo o Tribunal Constitucional português,
no Acórdão 866/1996 (Lei da Caça), adiado a publicação do acórdão para que o
legislador pudesse regular a situação tida por inconstitucional, de modo a
permitir um efeito diferido à eficácia da mesma.
Porém, algo significativo e distinto viria a ocorrer num dos
mencionados acórdãos da "crise" - no caso, o Acórdão 353 de 2012,
marcado pelo resultado controvertido, já detectável pela simples existência de
diversas declarações de votos apartadas.
As normas (arts. 21 e 25 da Lei 64-B de 2011 - Orçamento do
Estado para 2012) questionadas suspendiam total ou parcialmente o pagamento dos
subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos
13.º e/ou 14.º meses, para pessoas que auferissem remuneração salarial de
entidade pública e para pensionistas do sistema público de segurança social
durante os anos de 2012 a 2014.
As medidas eram temporárias e se inseriam no âmbito do
Programa de Assistência Econômica e Financeira (Paef) acordadas por Portugal
junto à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional, tendentes à redução
do déficit público como parte dos condicionantes dos empréstimos junto a tais
órgãos.
O Tribunal ponderou que “a liberdade do legislador recorrer ao
corte de remunerações e pensões das pessoas que auferem por verbas públicas, na
mira de alcançar um equilíbrio orçamental, mesmo num quadro de uma grave crise
econômico-financeira, não pode ser ilimitada”, daí porque a “diferença do grau
de sacrifício para aqueles que são atingidos por esta medida e para ao que não
o são não pode deixar de ter limites”, expondo ainda que a “dimensão da
desigualdade do tratamento tem que ser proporcionada às razões que justificam
esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva”.
Explicou o Tribunal que as restrições impostas pelos artigos
questionados não possuíam “equivalente para a generalidade dos outros cidadãos
que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, independentemente dos
seus montantes”, e que “a diferença de tratamento é de tal modo acentuada e
significativa que as razões de eficácia da medida adotada na prossecução do
objetivo da redução do déficit público para os valores apontados nos memorandos
de entendimento não tem (sic) uma valia suficiente para justificar a dimensão
de tal diferença”.
Por tudo isso, concluiu: “o diferente tratamento imposto a
quem aufere remunerações e pensões por verbas públicas ultrapassa os limites da
proibição do excesso em termos de igualdade proporcional”.
A decisão parecia encaminhar-se para a total declaração de
inconstitucionalidade com efeitos imediatos; porém, em desfecho muito
questionado, o Tribunal achou por bem manipular os efeitos da mesma para
excluí-la do ano de 2012 (primeiro ano de efeito dos cortes financeiros
impostos pela lei), já que era importante ao Estado português “no atual
contexto de grave emergência, continuar a ter acesso a este financiamento
externo”.
De tal modo que o Tribunal, valendo-se do art. 282.4 da
Constituição portuguesa, determinou que apesar da declaração de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral, por violação à igualdade, das normas constantes
nos artigos atacados, aduziu que “os efeitos desta declaração de
inconstitucionalidade não se apliquem [aplicassem] à suspensão do pagamento dos
subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos
13.º e/ou 14.º meses, relativos ao ano de 2012”, o que seria um objetivo de
excepcional interesse público.
(Jurisdição constitucional e alguns dos problemas econômico
financeiros e impactos das sentenças que “custam”; Revista de Processo; VOL.
253 (MARÇO 2016)
Efetivamente, desconsiderar as
consequências econômicas da decisão judicial pode significar o comprometimento
de outros direitos, eventualmente até mais prioritários, em razão da
impossibilidade de o Estado satisfazer a todas as necessidades sociais.
Penso que este peculiar caso
proporciona uma especial oportunidade para o Plenário voltar ao tema da
“reserva do possível”, a respeito do qual vale invocar as palavras do eminente
Decano desta CORTE, Min. CELSO DE MELLO:
“Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas,
significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN
HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New
York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos
direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo
adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais
positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e
culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de
concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro
subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,
objetivamente, a incapacidade econômicofinanceira da pessoa estatal, desta não
se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a
imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal
hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou
político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo,
arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o
estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de
condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do
possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível –
não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do
cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa
conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo,
aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial
fundamentalidade.
(...)
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula
da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos
direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em
um binômio que compreende, de um lado,
(1) a razoabilidade da pretensão
individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro,
(2) a existência de disponibilidade
financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele
reclamadas.
Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental
de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que
os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão +
disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e
em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos,
descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais
direitos. “(ADPF 45 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, DJ 04/05/2004)”
Vejam-se, ainda, interessantes
considerações extraídas de precedente da 5ª Turma Especializada do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, relatado pelo ilustre Desembargador Federal
Ricardo Perlingeiro:
“7. As limitações à efetivação de um direito
fundamental não podem justificar a inobservância de um “mínimo
existencial”, não havendo como transigir em relação ao núcleo mínimo.
8. Em regra, é inadmissível que o
Estado, diante de uma omissão no seu dever de garantir o exercício de um
direito fundamental, baseado em uma
análise de proporcionalidade entre os valores em jogo – assistência jurídica
gratuita e interesse econômico/financeiro do Estado –, invoque a reserva do
possível para justificar a inobservância do seu dever de assegurar o acesso à
justiça dos necessitados.
9. A reserva do possível deve ser
compreendida como restrições de direitos fundamentais sociais originários,
observando sempre um mínimo existencial. Somente fora do âmbito de proteção
desse mínimo – “inegociável” no debate político – justifica-se
constitucionalmente a imposição de limites aos direitos fundamentais enquanto
não houver orçamento ou políticas públicas que os compreendam.” (Apelação
Cível/Reexame Necessário 0000459-13.2012.4.02.5004; DJe 17/5/2016)
(grifos nossos)
Acerca desse instigante tema,
veja-se a exposição feita por Lucivanda Serpa Gomes e Patrícia Moura Monteiro:
“4. RESERVA DO POSSÍVEL vs RESERVA ORÇAMENTÁRIA
A teoria da “Reserva do Possível”, elaborada a partir do
início da década de 70, é o resultado de julgados da Corte Constitucional
alemã, que versava sobre o direito ao acesso ao ensino superior, na qual ficou
assente que a “construção de direitos subjetivos à prestação material de
serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos
respectivos recursos.” (SCAFF, 2005, p. 89). Com efeito, é na composição do
orçamento público que se pode visualizar a existência de disponibilidades
financeiras para determinados setores priorizados por decisões
políticas-governamentais.
Segundo a decisão do Tribunal Federal alemão, os direitos a
prestação positivas do Estado “estão sujeitas à reserva do possível no sentido daquilo que o
indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade”
(KRELL, 2002, p. 52). De acordo com o julgado, ainda que o Estado
disponibilizasse recursos suficientes, não seria razoável exigir da
Administração Pública a manutenção de programas de assistência social para quem
deles não necessitasse. (SARLET, 2010, p. 49).
Analisando os parâmetros do julgado, Alinie da Matta Moreira
(2011, p. 38), afirma que:
A definição faz clara referência às pretensões que podem ser,
numa medida razoável e proporcional, deduzidas pelo particular em face do
Estado, cujo atendimento demandará uma existência de recursos públicos
suficientes sem que se verifique o comprometimento do interesse coletivo.
Destarte, a reserva do possível passou a ser vista como um
limite fático relacionado à capacidade econômica e financeira do Estado, que
impõe restrições à exigibilidade judicial dos direitos sociais, a exemplo da
condenação do Estado à prestação de medicamentos fora das listas do sistema de
saúde, tratamentos experimentais ou no Exterior. No entanto, a ideia de
restrição orçamentária não é bem aceita pela maior parte dos doutrinadores e
dos magistrados.
No Brasil, os Tribunais Superiores, inclusive, quando chamados
a decidir casos limites envolvendo o direito fundamental à saúde [as chamadas
escolhas trágicas], não tem levado a sério todos os lados da questão; não
realizam qualquer juízo de ponderação [adequação, necessidade e da
proporcionalidade em sentido estrito] dos direitos em conflito e chegam a
afirmar de forma peremptória que, o interesse financeiro em relação ao direito
à saúde, é um interesse secundário.
Esquecem, pois, que a Constituição, em seu art. 167, II, veda
a realização de despesas ou assunção de obrigações que excedam os créditos
orçamentários.
A admissão da existência de escassez de recursos e da reserva
do possível nas Cortes Judiciais, ainda que não tratada devidamente, pode ser
considerado um avanço, visto que, conforme noticiado por Daniel Wei Liang Wang
(2010, p. 353) “até 2007, todas as decisões [judiciais] analisadas concediam
o medicamento ou tratamento pedido pelo impetrante. Não havia sequer um voto
divergente nos acórdãos encontrado.” Inexistia, portanto, qualquer
referência à questão dos custos, e mesmo quando aparece algo neste sentido é
tratado como algo de somenos. A guisa de exemplo, no julgamento do RE nº
198263, o Ministro Sidney Sanches, em seu voto, afirma de forma categórica: “em matéria tão relevante como a
saúde, descabem disputas menores sobre legislação, muito menos sobre verbas,
questão de prioridade”.
Ricardo Lobo Torres (2010, p. 73-74), traz importante
contribuição para o debate sobre a efetivação dos direitos sociais no Brasil ao
discorrer sobre “Reserva do Orçamento”. Segundo o autor, as EC nº(s) 14/1996
[manutenção e desenvolvimento do ensino], 29/2000 [serviço público de saúde], e
31/2000 [fundo de combate e erradicação da pobreza], ao disporem sobre
vinculação de receitas de impostos, criaram condições para judicialização dos
direitos sociais, visto que doravante o Poder Público deverá destinar parcela
de recursos correspondente a um percentual sobre a receita tributária
proveniente de transferências, nas áreas ali referidas.
Assim, com base na nova exigência de vinculação de receitas,
as instâncias judiciais monocrática passaram a conceder liminares e cautelares,
a partir da literalidade dos dispositivos constitucionais, outorgando de forma
individualizada, a prestação estatal que deveria ser coletiva.
Em vista disso, Ricardo Lobo Torres (2010, p. 74), faz
contundente crítica à forma insistente em que o Poder Judiciário vem prolatando
decisões concessivas de direito, sem examinar a questão orçamentária, o
equilíbrio financeiro geral, sem verificar a existência de recursos que
viabilizem a concreção de direitos, e, ainda, sem atentar para as políticas
públicas insertas no plano plurianual:
Os direitos econômicos e sociais existem, portanto, sob a
reserva do possível ou da soberania orçamentária do legislador, ou seja, da
reserva da lei instituidora das políticas públicas, da reserva da lei
orçamentária e do empenho da despesa por parte da Administração. A pretensão do
cidadão é à política pública, e não a adjudicação individual de bens públicos.
Assim, após a EC nº 29/2000 que assegura recursos mínimos para
o financiamento das ações e serviços da saúde, o Judiciário não poderia
adjudicar bens públicos de forma particularizada [fármaco, prótese,
procedimentos cirúrgicos], ou mesmo determinar o custeio de procedimentos que
sequer se encontram entre aqueles autorizados no orçamento [tratamento no
Exterior], mas determinar a implementação de políticas públicas pela Administração
Pública. Ademais, o Poder Judiciário sob o argumento de conferir efetividade
aos direitos sociais, não pode simplesmente invadir a esfera de competência de
outros poderes, ou determinar medidas desarrazoada em nome do “mínimo
existencial”, ao determinar o sequestro de receitas.
Neste sentido, uma vez mais a lição de Ricardo Lobo Torres
(2010, p.76):
A superação da omissão do legislador ou da lacuna orçamentária
deve ser realizada por instrumentos orçamentários, e jamais à margem das regras
constitucionais que regulam a lei de meios. Se, por absurdo, não houver dotação
orçamentária, a abertura dos créditos adicionais cabe aos poderes políticos
(Administração e Legislativo), e não ao Judiciário, que apenas reconhece a
intangibilidade do mínimo existencial e determina aos poderes a prática dos
atos orçamentários cabíveis.
Não obstante a necessidade fática de recursos para promover o
bem público, na prática, o Poder Judiciário, ainda que bem-intencionado, vê o
custeio como algo de menor valor, como se orçamento não constituísse um instrumento político que
vincula todos os agentes públicos, constituindo-se uma garantia
aos contribuintes.” (A escassez de recursos orçamentários como limite a efetividade do direito
fundamental à saúde in Direitos sociais e políticas públicas I
[Recurso eletrônico on-line]/organização CONPED/UFF; coordenadores: Joaquim
Leonel de Rezende Alvim... [et al.]. – Florianópolis: FUNJAB, 2012., páginas
35/55).
Enfim, este caso terá a
importante função de definir como o magistrado deve proceder quando a solução,
pela via judicial, do imobilismo da Administração acarretar enorme
comprometimento das verbas públicas. Além da alternativa adotada neste caso – a
imposição da obrigação ao Poder Público, sem se levar em conta os gastos
decorrentes do cumprimento da decisão -, merecem ser sopesadas e discutidas as
seguintes opções:
i) a
impossibilidade da decisão judicial conceder efeitos financeiros gigantescos em
face da inércia em se fazer
a perícia em 45 dias;
ii) a ordem
judicial depender da aferição não apenas da inércia propriamente dita, mas
também das reais condições de a Administração superá-la.
Com efeito, além das dificuldades
em arcar com valores expressivos para necessidades específicas, outros fatores
podem concorrer para a inviabilidade da satisfação plena do serviço público.
O INSS registra o número elevado
de aposentadorias e exonerações de peritos, cuja reposição seguramente não se
dará com facilidade. Comprovadas essas contingências, cabe discutir se também
devem ser levadas em conta pelo juiz ao julgar o pedido de implementação de
políticas públicas.
Na presente hipótese, portanto,
patente a repercussão geral.
Os recursos extraordinários somente serão
conhecidos e julgados, quando essenciais e relevantes as questões
constitucionais a serem analisadas, sendo imprescindível ao recorrente, em sua
petição de interposição de recurso, a apresentação formal e motivada da
repercussão geral que demonstre, perante o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a
existência de acentuado interesse geral na solução das questões constitucionais
discutidas no processo, que transcenda a defesa puramente de interesses
subjetivos e particulares.
Foi cumprida, no caso, obrigação
do recorrente de apresentar, formal e motivadamente, a repercussão geral,
demonstrando a relevância da questão constitucional debatida que ultrapasse os
interesses subjetivos da causa, conforme exigência constitucional, legal e
regimental (art. 102, § 3º, da CF/88, c/c art. 1.035, § 2º, do Código de
Processo Civil de 2015 e art. 327, § 1º, do Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal).
Com efeito, (a) o tema
controvertido é portador de ampla repercussão e de suma importância para o
cenário político, social e jurídico e (b) a matéria não interessa única e
simplesmente às partes envolvidas na lide.
Adite-se que simples pesquisa na
rede mundial de computadores indica haver múltiplas ações civil públicas, em
várias regiões do País, com idêntico objeto. Vejamos:
a) PROCESSO
Nº: 0801806-81.2014.4.05.8500 (3ª Vara Federal de Sergipe);
b) PROCESSO
1000348-97.2019.4.01.4000 (2ª Vara Federal de Piauí);
c) PROCESSO
0002794-17.2014.403.6003 (1ª Vara Federal de Três Lagoas/MS);
d) PROCESSO
5000702-09.2010.404.7000 (Seção Judiciária do Paraná);
e) PROCESSO
1000742-48.2017.4.01.4300 (1ª Vara Federal Cível de Tocantins);
Por essas razões, manifesto-me
pelo reconhecimento
da repercussão geral da matéria constitucional.
É como voto.
REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.171.152
SANTA CATARINA.
MANIFESTAÇÃO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
– BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO
– PERÍCIA MÉDICA – PRAZO – IMPLEMENTAÇÃO AUTOMÁTICA – REPERCUSSÃO GERAL
CONFIGURADA.
1. O
assessor David Laerte Vieira prestou as seguintes informações:
Eis a síntese do discutido no recurso extraordinário nº 1.171.152,
relator o ministro Alexandre de Moraes, inserido no sistema eletrônico da
repercussão geral em 13 de setembro de 2019, sexta-feira, sendo o último dia
para manifestação 3 de outubro, quinta-feira:
O Instituto Nacional do Segurado Social – INSS interpôs
recurso extraordinário, com alegada base na alínea “a” do inciso III do artigo
102 da Constituição Federal, contra acórdão por meio do qual o Tribunal
Regional Federal da 4ª Região assentou, aludindo ao princípio da razoabilidade,
o prazo máximo de quarenta e cinco dias para a realização de perícia necessária
à concessão de benefício previdenciário, a contar do requerimento
administrativo, impondo a implementação automática do direito postulado quando
não observado o lapso.
Assinala ofensa aos artigos 2º, 5º, inciso II, 37, 97, 127,
129 e 201, da Lei Maior. Sustenta como preliminares a negativa de jurisdição, a
ilegitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública na defesa de
direitos individuais disponíveis e o desrespeito à cláusula de reserva de
plenário. Afirma inobservado o princípio da legalidade ante a concessão automática
de benefícios. Ressalta inviável conferir prazo à efetivação de perícias,
considerados os princípios da separação dos poderes e da legalidade a se
sobreporem aos da eficiência, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade.
Sublinha ultrapassar o tema os limites subjetivos da lide,
mostrando-se relevante dos pontos de vista econômico, social e jurídico.
O extraordinário foi admitido na origem. O Relator submeteu o
processo ao denominado Plenário Virtual, manifestando-se pela existência de
repercussão geral da questão constitucional relativa à possibilidade de o Poder
Judiciário estabelecer prazo para o INSS realizar perícia médica e determinar a
implantação do benefício previdenciário buscado, caso o exame não ocorra no prazo.
2. Tem-se
matéria de envergadura constitucional, circunstância a reclamar o crivo do Supremo. Cumpre a
este Tribunal definir se o Judiciário pode, ou não, fixar ao Órgão
previdenciário prazo para a realização de perícia médica, sob pena de
implementação automática do benefício requerido.
3.
Pronuncio-me no sentido de estar configurada a repercussão geral.
4. À
Assessoria, para acompanhar a tramitação do incidente.
5.
Publiquem.
Brasília,
17 de setembro de 2019.
Ministro
MARCO AURÉLIO
Documento assinado digitalmente
conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001.
O documento pode ser acessado
pelo endereço http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp
sob o código C2DB-1158-3301-226F
e senha E47B-7243-0528-9ECC
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