BPC: CRITÉRIO RENDA - ESTÁ DEFASADO PARA CARACTERIZAR A CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE

 

BPC: CRITÉRIO RENDA - ESTÁ DEFASADO PARA CARACTERIZAR A CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE

 

...o critério de ¼ do salário mínimo utilizado pela LOAS está completamente defasado e mostra-se atualmente inadequado para aferir a miserabilidade das famílias que, de acordo com o art. 203, V, da Constituição, possuem o direito ao benefício assistencial.

 

 


RECLAMAÇÃO 4374 – LOAS – Benefício Assistencial

 

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES: Trata-se de reclamação ajuizada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra decisão proferida pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Estado de Pernambuco, nos autos do Processo no 2005.83.20.009801-7, que concedeu ao interessado o benefício assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Constituição. Transcrevo a ementa da decisão reclamada

(fls. 68-69):

 

“BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ANÁLISE DAS CONDIÇÕES SÓCIOECONÔMICAS DO AUTOR. REQUISITOS DO ART. 20 DA LEI 8.742/93. RENDA PER CAPITA. MEIOS DE PROVA. SÚMULA 11 DA TUN. LEI 9.533/97. COMPROVAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.

 

1. O artigo 20 da Lei 8.742/93 destaca a garantia de um salário mínimo mensal às pessoas portadoras de deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais, que comprovem, em ambas as hipóteses, não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.

 

2. Já o § 3º do mencionado artigo reza que, ‘considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo’.

 

3. Na hipótese em exame, o laudo pericial concluiu que o autor é incapaz para as atividades laborativas que necessitem de grandes ou médios esforços físicos ou que envolvam estresse emocional para a sua realização.

 

4. Em atenção ao laudo pericial e considerando que a verificação da incapacidade para o trabalho deve ser feita analisando-se as peculiaridades do caso concreto, percebe-se pelas informações constantes nos autos que o autor além da idade avançada, desempenha a profissão de trabalhador rural, o qual não está mais apto a exercer. Ademais, não possui instrução educacional, o que dificulta o exercício de atividades intelectuais, de modo que resta improvável sua absorção pelo mercado de trabalho, o que demonstra a sua incapacidade para a vida independente diante da sujeição à ajuda financeira de terceiros para manter sua subsistência.

 

5. Apesar de ter sido comprovado em audiência que a renda auferida pelo recorrido é inferior a um salário mínimo, a comprovação de renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo é dispensável quando a situação de hipossuficiência econômica é comprovada de outro modo e, no caso dos autos, ela restou demonstrada.

 

6. A comprovação da renda mensal não está limitada ao disposto no art. 13 do Decreto 1.744/95, não lhe sendo possível obstar o reconhecimento de outros meios probatórios em face do princípio da liberdade objetiva dos meios de demonstração em juízo, desde que idôneos e moralmente legítimos, além de sujeitos ao contraditório e à persuasão racional do juiz na sua apreciação.

 

7. Assim, as provas produzidas em juízo constataram que a renda familiar do autor é inferior ao limite estabelecido na Lei, sendo idônea a fazer prova neste sentido. A partir dos depoimentos colhidos em audiência, constatouse que o recorrido não trabalha, vivendo da ajuda de parentes e amigos.

 

8. Diante de tais circunstâncias, pode-se concluir pela veracidade de tal declaração de modo relativo, cuja contraprova caberia ao INSS, que se limitou à impugnação genérica.

 

9. Quanto à inconstitucionalidade do limite legal de renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo, a sua fixação estabelece apenas um critério objetivo para julgamento, mas que não impede o deferimento do benefício quando demonstrada a situação de hipossuficiência.

 

10. Se a renda familiar é inferior a ¼ do salário mínimo, a presunção de miserabilidade é absoluta, sem que isso afaste a possibilidade de tal circunstância ser provada de outro modo.

 

11. Ademais, a Súmula 11 da TUN dispõe que mesmo quando a renda per capita for superior àquele limite legal, não há óbices à concessão do benefício assistencial quando a miserabilidade é configurada por outros meios de prova.

 

12. O próprio legislador já reconheceu a hipossuficiência na hipótese de renda superior ao referido limite ao editar a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituam programas de garantia de renda mínima associados a ações sócio-educativas, estabelecendo critério mais vantajoso para a análise da miserabilidade, qual seja, renda familiar per capita inferior a ½ salário mínimo.

 

13. A parte sucumbente deve arcar com o pagamento das custas e dos honorários advocatícios, ora arbitrados à razão de 10% sobre o valor da condenação.

 

14. Sentença mantida. Recurso a que se nega provimento”. (fls. 68-69) 

 

O reclamante alega que houve violação à decisão proferida por esta Corte na ADI nº 1.232/DF (Pleno, por maioria; Rel. Min. Ilmar Galvão, Red. para o acórdão Min. Nelson Jobim; DJ de 1º.6.2001). Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993, que estabelece critérios para a concessão do benefício assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Constituição. A petição inicial sustenta que a decisão reclamada afastou o requisito legal expresso no mencionado dispositivo, o qual, segundo o acórdão tomado como parâmetro da reclamação, representa critério objetivo a ser observado para a prestação assistencial do Estado.

 

Assim, o reclamante requer a cassação da decisão reclamada, afastando-se a exigência do pagamento do benefício assistencial, que estaria em descompasso com o § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993, tendo em vista a inobservância do requisito renda familiar per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

 

Em decisão de 1º de fevereiro de 2007, modificando posicionamento anterior que acolhia pedidos idênticos ao desta reclamação, indeferi o pedido de medida liminar, acenando com a necessidade de que o tema fosse novamente levado à apreciação do Plenário da Corte.

 

O parecer do Procurador-Geral da República é pela improcedência da reclamação (fls. 136-140).

 

É o relatório.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Relator):

 

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O HISTÓRICO DA CONCESSÃO JUDICIAL DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL E SUA REPERCUSSÃO NA JURISPRUDÊNCIA DO STF.

 

Senhores Ministros, Senhoras Ministras. O caso concreto subjacente aos autos traduz um problema que é de todos nós conhecido. Há alguns anos temos recebido uma impressionante quantidade de processos, em sua maioria recursos extraordinários e reclamações, cujo tema principal é a concessão judicial do benefício assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Constituição de 1988. Uma difícil questão constitucional, que vem sendo resolvida pela atuação corajosa da magistratura de primeira instância, na tentativa de remediar um gravíssimo problema social que se notabiliza como uma soma de injustiças, decorrente de uma desencontrada relação entre a letra objetiva da lei e a vontade da Constituição.

 

O exame dos diversos casos revela um comportamento judicial peculiar, porém muito comum. A análise histórica dos modos de raciocínio judiciário demonstra que os juízes, quando se deparam com uma situação de incompatibilidade entre o que prescreve a lei e o que se lhes apresenta como a solução mais justa para o caso, não tergiversam na procura das melhores técnicas hermenêuticas para reconstruir os sentidos possíveis do texto legal e viabilizar a adoção da justa solução.

 

Esse é o tom da recente história da concessão judicial do benefício assistencial, que vale a pena retomar em uma rápida análise descritiva.

 

A Lei n° 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei de Organização da Assistência Social – LOAS), ao regulamentar o art. 203, inciso V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja  concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

 

O primeiro critério diz respeito aos requisitos objetivos para que a pessoa seja considerada idosa ou portadora de deficiência. Define a lei como idoso o indivíduo com 70 (setenta) anos ou mais, e como deficiente a pessoa incapacitada para a vida independente e para o trabalho (art. 20, caput e § 2º). Com o advento do Estatuto do Idoso, a Lei 10.741, em outubro de 2003, passou a ser considerada idosa a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

 

O segundo critério diz respeito à comprovação da incapacidade da família para prover a manutenção do deficiente ou idoso. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93: “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.

 

A aplicação dos referidos critérios encontrou sérios obstáculos na complexidade e na heterogeneidade dos casos concretos. Se, antes da edição da Lei 8.742/93, o art. 203, inciso V, da Constituição era despido de qualquer eficácia – o que a doutrina especializada costuma denominar de norma constitucional de eficácia limitada –, o advento da legislação regulamentadora não foi suficiente para dotá-lo de plena eficácia. Questionamentos importantes foram suscitados logo no início da aplicação da lei. E, sem dúvida, o mais importante dizia respeito ao critério de mensuração da renda familiar per capita. O requisito financeiro estabelecido pela lei começou a ter sua constitucionalidade contestada, pois, na prática, permitia que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente.

 

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal. O Procurador-Geral da República, acolhendo representação do Ministério Público Federal no Estado de São Paulo, ajuizou no STF ação direta de inconstitucionalidade (ADI 1.232/DF) que tinha por objeto o § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93. Em parecer da então Subprocuradora-Geral da República, Dra. Anadyr de Mendonça Rodrigues, o MPF manifestou-se por uma interpretação conforme a Constituição. A tese era a de que o § 3º do art. 20 da LOAS nada mais fazia do que estabelecer uma presunção juris et de jure, a qual dispensava qualquer tipo de comprovação da necessidade assistencial para as hipóteses de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, mas que não excluía a possibilidade de comprovação, em concreto e caso a caso, da efetiva falta de meios para que o deficiente ou o idoso possa prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família.

 

O Ministro Ilmar Galvão, então Relator dessa ação, trouxe voto acolhendo a proposta do Ministério Público. A maioria, porém, dele divergiu. A tese vencedora, proferida pelo Ministro Nelson Jobim, considerou que o § 3º do art. 20 da LOAS traz um critério objetivo que não é, por si só, incompatível com a Constituição, e que a eventual necessidade de criação de outros requisitos para a concessão do benefício assistencial seria uma questão a ser avaliada pelo legislador. Assim, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF foi julgada improcedente, com a consequente declaração de constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS, ficando a ementa do acórdão redigida da seguinte maneira (Rel. p/ o acórdão Min. Nelson Jobim, DJ 1º.6.2001):

 

“CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE”.

 

A decisão do Tribunal, porém, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. O voto do Ministro Sepúlveda Pertence, que já avaliava a presença de uma possível inconstitucionalidade por omissão parcial, parecia anunciar que o problema relativo à aplicação da LOAS tenderia a permanecer até que o legislador se pronunciasse sobre o tema. Como a lei permaneceu inalterada, apesar do latente apelo realizado pelo Tribunal, por juízes e tribunais – principalmente os então recém-criados Juizados Especiais – continuaram a elaborar maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. E isso passava a significar, cada vez mais, que a interpretação da LOAS pleiteada pelo Ministério Público na ADI 1.232 não era apenas uma opção hermenêutica, mas uma imposição que se fazia presente nas situações reais multifacetárias apresentadas aos juízes de primeira instância. Entre aplicar friamente o critério objetivo da lei e adotar a solução condizente com a realidade social da família brasileira, os juízes permaneceram abraçando a segunda opção, mesmo que isso significasse a criação judicial de outros critérios não estabelecidos em lei e, dessa forma, uma possível afronta à decisão do STF.

 

A Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais chegou a consolidar, em súmula (Súmula 11, hoje cancelada), o entendimento segundo o qual “a renda mensal per capita familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º da Lei nº. 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”.

 

A situação foi extremamente propícia para que começasse a aportar no Supremo Tribunal Federal uma verdadeira enxurrada de reclamações movidas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Tribunal então passou a julgar procedentes tais reclamações para cassar decisões, proferidas pelas instâncias jurisdicionais inferiores, que concediam o benefício assistencial entendendo que o requisito definido pelo § 3o do art. 20 da Lei 8.742/93 não é exaustivo e que, portanto, o estado de miserabilidade poderia ser comprovado por outros meios de prova.

 

A questão foi amplamente debatida no julgamento da Rcl – AgR 2.303/RS, Rel. Min. Ellen Gracie (DJ 1.4.2005). Na ocasião, o Ministro Ayres Britto, em voto-vista, chegou a defender a higidez constitucional e a compatibilidade com a decisão na ADI 1.232 dos comportamentos judiciais que, levando em conta as circunstâncias específicas do caso concreto, encontram outros critérios para aferir o estado de miserabilidade social do indivíduo. A maioria, no entanto, firmou-se no sentido de que, na decisão proferida na ADI 1.232, o Tribunal definiu que o critério de ¼ do salário mínimo é objetivo e não pode ser conjugado com outros fatores indicativos da miserabilidade do indivíduo e de seu grupo familiar, cabendo ao legislador, e não ao juiz na solução do caso concreto, a criação de outros requisitos para a aferição do estado de pobreza daquele que pleiteia o benefício assistencial.

 

Nesse meio tempo, observou-se certa proliferação de leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas; e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). Isso foi visto pelos aplicadores da LOAS como um fato revelador de que o próprio legislador estaria reinterpretando o art. 203 da Constituição da República. Abria-se, com isso, mais uma porta para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo art. 20 da LOAS. Juízes e tribunais passaram a estabelecer o valor de ½ salário mínimo como referência para a aferição da renda familiar per capita, o que culminou, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na aprovação da Súmula 6, de 16 de novembro de 2004, cujo teor é o seguinte:

 

“O critério de verificação objetiva da miserabilidade correspondente a ¼ (um quarto) do salário mínimo, previsto no art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93, restou modificado para ½ (meio) salário mínimo, a teor do disposto no art. 5º, I, da Lei nº 9.533/97, que autorizava o Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituíssem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas, e art. 2º, § 2º, da Lei nº 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA”.

 

Não obstante, o STF manteve seu entendimento, mesmo nas reclamações ajuizadas contra decisões que, procedendo a uma interpretação sistemática das leis sobre a matéria, concediam o benefício assistencial com base em outros critérios estabelecidos por alterações legislativas posteriores (Lei 10.836/2004 – Bolsa Família; Lei 10.689/2003 – Programa Nacional de Acesso à Alimentação; Lei 9.533/97 – autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas). Assim decidiu o Tribunal na Rcl 2.323/PR, Rel. Min. Eros Grau, DJ 20.5.2005.

 

Mas as reiteradas decisões do STF não foram suficientes para coibir as decisões das instâncias inferiores na solução dos casos concretos. A inventividade hermenêutica passou a ficar cada vez mais apurada, tendo em vista a necessidade de se escapar dos comandos impostos pela jurisprudência do STF. A diversidade e a complexidade dos casos levaram a uma variedade de critérios para concessão do benefício assistencial, tais como os descritos a seguir:

 

a) O benefício previdenciário de valor mínimo, ou outro benefício assistencial percebido por idoso, é excluído da composição da renda familiar (Súmula 20 das Turmas Recursais de Santa Catarina e Precedentes da Turma Regional de Uniformização);

 

b) Indivíduos maiores de 21 (vinte e um) anos são excluídos do grupo familiar para o cálculo da renda per capita;

 

c) O benefício assistencial percebido por qualquer outro membro da família não é considerado para fins da apuração da renda familiar;

 

d) Consideram-se componentes do grupo familiar, para fins de cálculo da renda per capita, apenas os que estão arrolados expressamente no art. 16 da Lei 8.213/91;

 

e) Os gastos inerentes à condição do beneficiário (remédios etc.) são excluídos do cálculo da renda familiar.

 

E as reclamações ajuizadas pelo INSS, além dos milhares de recursos extraordinários também interpostos pela autarquia previdenciária, continuaram aportando na Corte.

 

A partir do ano de 2006, decisões monocráticas de eminentes Ministros deste Tribunal passaram a rever anteriores posicionamentos. Ante a impossibilidade imediata de modificação do entendimento fixado na ADI 1.232 e nas RCL 2.303 e 2.323, acima comentadas, a solução muitas vezes encontrada fundava-se em subterfúgios processuais para o não conhecimento das reclamações.

 

Os Ministros Celso de Mello, Ayres Britto e Ricardo Lewandowski passaram a negar seguimento às reclamações ajuizadas pelo INSS, com o fundamento de que esta via processual, como já assentado pela jurisprudência do Tribunal, não é adequada para se reexaminar o conjunto fático-probatório em que se baseou a decisão reclamada para atestar o estado de miserabilidade do indivíduo e conceder-lhe o benefício assistencial sem seguir os parâmetros do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 (Rcl 4.422/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.6.2006; Rcl 4.133/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 30.6.2006; Rcl 4.366/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 1.6.2006).

 

O Ministro Sepúlveda Pertence enfatizava, em análise de decisões que concederam o benefício com base em legislação superveniente à Lei 8.742/93, que as decisões reclamadas não declararam a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 dessa lei, mas apenas interpretaram tal dispositivo em conjunto com a legislação posterior, a qual não foi objeto da ADI 1.232 (Rcl 4.280/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30.6.2006).

 

Somem-se a essas as decisões do Ministro Marco Aurélio, que sempre deixou claro seu posicionamento no sentido da insuficiência dos critérios definidos pelo § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 para fiel cumprimento do art. 203, inciso V, da Constituição (Rcl 4.164/RS, Rel. Min. Marco Aurélio).

 

A Ministra Cármen Lúcia também se posicionou sobre o assunto, em decisão permeada por trechos dignos de nota (Rcl 3.805/SP, DJ 18.10.2006), como transcrito a seguir:

 

“(...) O que se põe em foco nesta Reclamação é se seria possível valer-se o Reclamante deste instituto para questionar a autoridade de decisão do Supremo Tribunal, que, ao menos em princípio, não teria sido observada pelo Reclamado. A única fundamentação da Reclamação é esta: nos termos do art. 102, inc. I, alínea l, da Constituição da República, haverá de conhecer este Tribunal da reclamação ‘para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.’ Na presente Reclamação, expõe-se que teria havido afronta à autoridade da decisão que se põe no acórdão proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232, na qual afirmou este Tribunal Supremo que "inexiste a restrição alegada em face do próprio dispositivo constitucional (art. 203, inc. V, da Constituição da República) que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado." (Rel. Ministro Ilmar Galvão, DJ 1º.6.2001). O exame dos votos proferidos no julgamento revela que o Supremo Tribunal apenas declarou que a norma do art. 20 e seu § 3º da Lei n. 8.742/93 não apresentava inconstitucionalidade ao definir limites gerais para o pagamento do benefício a ser assumido pelo INSS, ora Reclamante. Mas não afirmou que, no exame do caso concreto, o juiz não poderia fixar o que se fizesse mister para que a norma constitucional do art. 203, inc. V, e demais direitos fundamentais e princípios constitucionais se cumprissem rigorosa, prioritária e inescusavelmente. Como afirmado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no voto proferido naquele julgamento, ‘considero perfeita a inteligência dada ao dispositivo constitucional ... no sentido de que o legislador deve estabelecer outras situações caracterizadoras da absoluta incapacidade de manter-se o idoso ou o deficiente físico, a fim de completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no art. 203 da Constituição. A meu ver, isso não a faz inconstitucional.... Haverá aí inconstitucionalidade por omissão de outras hipóteses? A meu ver, certamente sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta.’ De se concluir, portanto, que o Supremo Tribunal teve por constitucional, em tese (cuidava-se de controle abstrato), a norma do art. 20 da Lei n. 8.742/93, mas não afirmou inexistirem outras situações concretas que impusessem atendimento constitucional e não subsunção àquela norma. Taxativa, nesse sentido, é a inteligência do acórdão nos termos clareados no voto do Ministro Sepúlveda Pertence, transcrito parcialmente acima. A constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. No caso que ora se apresenta, não parece ter havido qualquer afronta, portanto, ao julgado. Como afirma o Reclamado em suas informações (e, aliás, já se contém na decisão proferida), foram ‘...analisadas as condições fáticas demonstradas durante a instrução probatória...’ (fl. 48). Na sentença proferida nos autos daquela ação, o juízo reclamado esclareceu que: ‘No caso vertente, o estudo social realizado pela equipe técnica desta Comarca constatou (...) [que] a autora faz uso contínuo de medicamentos, e quando estes não se encontram, por qualquer motivo, disponíveis na rede pública, tem que adquiri-los... Além disso, comprovou-se (...) que a mãe da autora, com que recebe da pensão de 1 salário mínimo deixada pelo marido, também tem que ajudar um dos filhos que também não tem boa saúde mental...’ (fl. 82). Explica, ainda, aquela autoridade que: ‘Diante deste quadro, vê-se que os rendimentos da família, face aos encargos decorrentes de medicamentos que devem ser constantemente adquiridos para o tratamento da autora, são insuficientes para esta viver condignamente.’ (fl. 82). A pobreza extrema vem sendo definida, juridicamente, como ‘la marque d'une infériorité par rapport à um état considéré comme normal et d'une dépendance par rapport aux autres. Elle est um état d'exclusion qui implique l'aide d'autrui pour s'en sortir. Elle est surtout relative et faite d'humiliation et de privation.’ (TOURETTE, Florence. Extrême pauvreté et droits de l'homme. Paris: LGDJ, 2001, p. 4). Quer o INSS, ora Reclamante, se considere ser a definição do benefício concedido pela sentença reclamada incompatível com o quanto decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232. Não é o que se tem no caso. Também afirma que haveria incompatibilidade entre aquela decisão e a norma do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93. Afirmo: e a miséria constatada pelo juiz é incompatível com a dignidade da pessoa humana, princípio garantido no art. 1º, inc. III, da Constituição da República; e a política definida a ignorar a miserabilidade de brasileiros é incompatível com os princípios postos no art. 3º e seus incisos da Constituição; e a negativa do Poder Judiciário em reconhecer, no caso concreto, a situação comprovada e as alternativas que a Constituição oferece para não deixar morrer à mingua algum brasileiro é incompatível com a garantia da jurisdição, a todos assegurada como direito fundamental (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República). Portanto, não apenas não se comprova afronta à autoridade de decisão do Supremo Tribunal na sentença proferida, como, ainda, foi exatamente para dar cumprimento à Constituição da República, de que é guarda este Tribunal, que se exarou a sentença na forma que se pode verificar até aqui. Ademais, a Reclamação não é espécie adequada para se questionar sentença na forma indicada na petição, o que haverá de ser feito, se assim entender conveniente ou necessário o Reclamante, pelas vias recursais ordinárias e não se valendo desta via excepcional para pôr em questão o que haverá de ser suprido, judicialmente, pelas instâncias recursais regularmente chamadas, se for o caso. 9. Por essas razões, casso a liminar deferida anteriormente, em sede de exame prévio, e nego seguimento à Reclamação por inexistir, na espécie, a alegada afronta à autoridade de julgado deste Supremo Tribunal Federal que pudesse ser questionada e decidida por esta via especial e acanhada, como é a da espécie eleita pelo Reclamante. (...)”.

 

O exame atento de todo esse contexto me levou a muito refletir sobre o tema, o que culminou em decisão proferida nesta Reclamação, em 1º de fevereiro de 2007, na qual revi muitos posicionamentos antes adotados e passei a indeferir as pretensões cautelares do INSS, mantendo as decisões de primeira instância que concediam o benefício assistencial em situações de patente miserabilidade social. Eis alguns trechos elucidativos da referida decisão:

 

“A análise dessas decisões me leva a crer que, paulatinamente, a interpretação da Lei n° 8.742/93 em face da Constituição vem sofrendo câmbios substanciais neste Tribunal.

 

De fato, não se pode negar que a superveniência de legislação que estabeleceu novos critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais – como a Lei n.° 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei n.° 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei n.° 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei n.° 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas; assim como o Estatuto do Idoso (Lei n.° 10.741/03) – está a revelar que o próprio legislador tem reinterpretado o art. 203 da Constituição da República.

 

Os inúmeros casos concretos que são objeto do conhecimento dos juízes e tribunais por todo o país, e chegam a este Tribunal pela via da reclamação ou do recurso extraordinário, têm demonstrado que os critérios objetivos estabelecidos pela Lei n° 8.742/93 são insuficientes para atestar que o idoso ou o deficiente não possuem meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Constatada tal insuficiência, os juízes e tribunais nada mais têm feito do que comprovar a condição de miserabilidade do indivíduo que pleiteia o benefício por outros meios de prova. Não se declara a inconstitucionalidade do art. 20, § 3o, da Lei n° 8.742/93, mas apenas se reconhece a possibilidade de que esse parâmetro objetivo seja conjugado, no caso concreto, com outros fatores indicativos do estado de penúria do cidadão. Em alguns casos, procede-se à interpretação sistemática da legislação superveniente que estabelece critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais.

 

Tudo indica que – como parecem ter anunciado as recentes decisões proferidas neste Tribunal (acima citadas) – tais julgados poderiam perfeitamente se compatibilizar com o conteúdo decisório da ADI n.° 1.232.

 

Em verdade, como ressaltou a Ministra Cármen Lúcia, “a constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.” (Rcl n.° 3.805/SP, DJ 18.10.2006).

 

Portanto, mantendo-se firme o posicionamento do Tribunal em relação à constitucionalidade do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93, tal como esposado no julgamento da ADI 1.232, o mesmo não se poderia afirmar em relação ao que decidido na Rcl – AgR 2.303/RS, Rel. Min. Ellen Gracie (DJ 1.4.2005).

 

O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição.

 

Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei n.° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição.

 

A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3o do art. 20 da Lei n.° 8.742/93.

 

Diante de todas essas perplexidades sobre o tema, é certo que o Plenário do Tribunal terá que enfrentá-lo novamente.

 

Ademais, o próprio caráter alimentar do benefício em referência torna injustificada a alegada urgência da pretensão cautelar em casos como este.

 

Ante o exposto, indefiro o pedido de medida liminar”.

 

Após essa decisão, o número de reclamações ajuizadas pelo INSS no STF caiu abruptamente, chegando a observar-se, tempos depois, a quase inexistência de novos pedidos no protocolo do Tribunal. Mas o trânsito dos recursos extraordinários permaneceu inalterado.

 

Em 9 de fevereiro de 2008, o Tribunal reconheceu, no âmbito do RE 567.985 (Rel. Min. Marco Aurélio), a existência de repercussão geral da questão constitucional relativa à concessão do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição, decisão cuja ementa possui o seguinte teor (DJe 10.4.2008):

 

“REPERCUSSÃO GERAL – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA - IDOSO – RENDA PER CAPITA FAMILIAR INFERIOR A MEIO SALÁRIO MÍNIMO – ARTIGO 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Admissão pelo Colegiado Maior”.

 

Em 6 de julho de 2011, foi promulgada a Lei n.° 12.435, a qual altera diversos dispositivos da Lei 8.742/93 (LOAS). Observe-se, não obstante, que quanto ao § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93, não houve qualquer alteração, mantendo-se exatamente a mesma redação do referido dispositivo.

 

O momento, portanto, é oportuno para continuar as reflexões que venho tecendo sobre o tema desde a citada decisão monocrática proferida nesta RCL 4.374.

 

Sigo a mesma linha de análise da questão constitucional, antes aventada na naquela decisão, dividindo-a em dois ramos argumentativos:

 

a) a omissão inconstitucional parcial em relação ao dever constitucional de efetivar a norma do art. 203, V, da Constituição;

 

b) o processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei n.° 8.742/93.

 

Antes disso, não obstante, destino um tópico à análise da possibilidade de que, no julgamento desta reclamação, o Tribunal possa rever seu posicionamento quanto à decisão tida por violada, especificamente, a decisão proferida na ADI 1.232.

 

Passo então às razões substanciais de meu voto. 

 

2. A REVISÃO DA DECISÃO NA ADI 1.232 EM SEDE DE RECLAMAÇÃO.

 

A primeira questão a ser enfrentada diz respeito à possibilidade de se revisar, no julgamento da reclamação, a decisão que figura como parâmetro da própria reclamação.

 

Toda reclamação possui uma causa de pedir, que pode assumir formas distintas: pode-se alegar a afronta a determinada decisão ou súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal; ou se pode utilizar como fundamento a usurpação da competência do STF.

 

Quando a causa de pedir é a violação de uma decisão ou de súmula vinculante do STF, é inevitável que a reclamação se convole em uma típica ação constitucional que visa à proteção da ordem constitucional como um todo. Isso se deve a vários motivos, dentre os quais se podem destacar dois mais relevantes.

 

Em primeiro lugar, parece óbvio que o STF, no exercício de sua competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, possa declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre, portanto, da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos.

 

Essa hipótese poderá ocorrer, inclusive, quando a reclamação for ajuizada para preservar a competência do STF, na hipótese de que o ato usurpador da jurisdição constitucional do STF esteja fundado em norma inconstitucional. Nesse sentido, recorde-se o julgamento da Rcl n. 595 (Rel. Min. Sydney Sanches), no qual a Corte declarou a inconstitucionalidade de expressão contida na alínea “c” do inciso I do art. 106 da Constituição do Estado de Sergipe, que outorgava competência ao respectivo Tribunal de Justiça para processar e julgar ação direta de inconstitucionalidade de normas municipais em face da Constituição Federal.

 

Ressalte-se, ainda, que o exercício do controle incidental de constitucionalidade em tais hipóteses decorre de um dever imposto à Corte. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se firmou no sentido de que, posta uma questão de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo da qual dependa o julgamento da causa, a Corte não pode se furtar ao exame dessa questão (MS n.° 20.505/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 8.11.1991). Ainda que se declare prejudicado o julgamento da ação, deve o Tribunal se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada incidenter tantum.

 

Em segundo lugar, é natural que o Tribunal, ao realizar o exercício – típico do julgamento de qualquer reclamação – de confronto e comparação entre o ato impugnado (o objeto da reclamação) e a decisão ou súmula tida por violada (o parâmetro da reclamação), sinta a necessidade de reavaliar o próprio parâmetro e redefinir seus contornos fundamentais. A jurisprudência do STF está repleta de casos em que o Tribunal, ao julgar a reclamação, definiu ou redefiniu os lindes de sua própria decisão apontada como o parâmetro da reclamação. Apenas a título de exemplo, citem-se os seguintes casos.

 

Após o julgamento da ADI 1.662, Rel. Min. Maurício Corrêa, o Tribunal passou a apreciar uma relevante quantidade e diversidade de reclamações que acabaram definindo o real alcance daquela decisão sobre o regime de pagamento de precatórios. Isso ocorreu, por exemplo: na RCL-AgR 2009, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 10.12.2004, na qual o Tribunal fixou os contornos das decisões proferidas nas ADI 1.098 e 1.662, atestando que nelas não se tratou sobre do conceito de precatórios pendentes para efeito de incidência da norma do art. 78 do ADCT (em sentido semelhante, confira-se também o julgamento da RCL-AgR 3.293, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 13.4.2007); e RCL 1.525, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 3.2.2006, na qual o Tribunal delimitou o alcance da decisão proferida na ADI 1.662, especificamente sobre a amplitude do significado de “preterição” de precatórios para fins de seqüestro de verbas públicas.

 

A decisão cautelar na ADI 3.395, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 10.11.2006, deu interpretação ao art. 114, I, da Constituição, assentando o entendimento no sentido de que a competência da Justiça do Trabalho nele prevista não abrange o julgamento das causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores, que lhes sejam vinculados por relação jurídico-estatutária. Desde então, diversos questionamentos sobre a abrangência dessa decisão chegam ao Tribunal pela via da reclamação. Nesses casos, o STF passou a definir a extensão dessa decisão para as hipóteses de contratos temporários firmados pelo Poder Público e para os casos em que estejam envolvidos cargos em comissão (RCL 4.904, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 17.10.2008; RCL-AgR 4.489, Rel. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe 21.11.2008; RCL-AgR 4.054, Rel. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia, DJ 21.11.2008; RCL-MC-AgR 4.990, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 14.3.2008; RCL-MC-AgR 4.785, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 14.3.2008; RCL-AgR 7.633, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 17.9.2010; RCL-AgR 8.110, Rel. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe 12.2.2010).

 

No julgamento da ADI 3.460, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 15.6.2007, o Tribunal estabeleceu o conceito de atividade jurídica e fixou os requisitos para a sua comprovação nos concursos de ingresso na carreira do Ministério Público, novidade trazida pela EC 45/2004. Não obstante, o efetivo alcance desse conceito e dos requisitos para sua comprovação apenas ficaram assentados mediante o julgamento de diversas reclamações, dentre as quais sobressaem a RCL 4.906, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 11.4.2008, e a RCL 4.939, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 11.4.2008. O alcance da decisão na ADI 3.460 foi também definido, inclusive, em julgamento de mandados de segurança, com especial importância o referente ao MS 26.682, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 27.6.2008.

 

Outros exemplos também se encontram nas reclamações que delimitaram (ainda que por decisão monocrática) o conteúdo da decisão na ADI 3.324, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 5.8.2005, a qual tratou da observância da regra da congeneridade das instituições no processo de transferência obrigatória de alunos (servidores militares ou seus dependentes) do ensino superior. Em alguns casos, questionava-se sobre a hipótese de transferência obrigatória entre instituições públicas, quando o ingresso primário tivesse ocorrido em instituição privada, hipótese esta que, em princípio, não teria sido abarcada pela decisão na ADI 3.324 (RCL 3.665, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 19.12.2005; RCL 3.480, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 26.8.2005; RCL 3.664, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 10.11.2005; RCL 3.277, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 2.6.2005; RCL 3.653, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 18.8.2005; RCL 3.469, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 1º.8.2005).

 

Existem outros casos importantes e esses apresentados servem apenas como um exemplo desta atividade que é típica do julgamento da reclamação: a reinterpretação e, portanto, a redefinição do conteúdo e do alcance da decisão apontada como violada (decisão-parâmetro ou decisão-paradigma).

 

O “balançar de olhos” (expressão cunhada por Karl Engisch) entre a norma e o fato, que permeia o processo hermenêutico em torno do direito, fornece uma boa metáfora para a compreensão do raciocínio desenvolvido no julgamento de uma reclamação. Assim como no processo hermenêutico o juízo de comparação e subsunção entre norma e fato leva, invariavelmente, à constante reinterpretação da norma, na reclamação o juízo de confronto e de adequação entre objeto (ato impugnado) e parâmetro (decisão do STF tida por violada) implica a redefinição do conteúdo e do alcance do parâmetro.

 

É por meio da reclamação, portanto, que as decisões do Supremo Tribunal Federal permanecem abertas a esse constante processo hermenêutico de reinterpretação levado a cabo pelo próprio Tribunal. A reclamação, dessa forma, constitui o locus de apreciação, pela Corte Suprema, dos processos de mutação constitucional e de inconstitucionalização de normas (des Prozess des Verfassungswidrigwerdens), que muitas vezes podem levar à redefinição do conteúdo e do alcance, e até mesmo à superação, total ou parcial, de uma antiga decisão.

 

Como é sabido, a evolução interpretativa no âmbito do controle de constitucionalidade pode resultar na declaração de inconstitucionalidade de lei anteriormente declarada constitucional. Analisando especificamente o problema da admissibilidade de uma nova aferição de constitucionalidade de norma declarada constitucional pelo Bundesverfassungsgericht, Hans Brox a considera possível desde que satisfeitos alguns pressupostos. É o que anota na seguinte passagem de seu ensaio sobre o tema: “Se se declarou, na parte dispositiva da decisão, a constitucionalidade da norma, então se admite a instauração de um novo processo para aferição de sua constitucionalidade se o requerente, o tribunal suscitante (controle concreto) ou o recorrente (recurso constitucional = Verfassungsbeschwerde) demonstrar que se cuida de uma nova questão. Tem-se tal situação se, após a publicação da decisão, se verificar uma mudança do conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle, de modo a permitir supor que outra poderá ser a conclusão do processo de subsunção. Uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral pode levar a essa alteração” (ênfases acrescidas) [Hans Brox, Zur Zulässigkeit der erneuten Überprüfung einer Norm durch das Bundesverfassungsgericht, in Festschrift für Willi Geiger, cit., p. 809 (826)].

 

Na mesma linha de entendimento, Bryde assim se manifesta:

 

“Se se considera que o Direito e a própria Constituição estão sujeitos a mutação e, portanto, que uma lei declarada constitucional pode vir a tornarse inconstitucional, tem-se de admitir a possibilidade da questão já decidida poder ser submetida novamente à Corte Constitucional. Se se pretendesse excluir tal possibilidade, ter-se-ia a exclusão dessas situações, sobretudo das leis que tiveram sua constitucionalidade reconhecida pela Corte Constitucional, do processo de desenvolvimento constitucional, ficando elas congeladas no estágio do parâmetro de controle à época da aferição. O objetivo deve ser uma ordem jurídica que corresponda ao respectivo estágio do Direito Constitucional, e não uma ordem formada por diferentes níveis de desenvolvimento, de acordo com o momento da eventual aferição de legitimidade da norma a parâmetros constitucionais diversos. Embora tais situações não possam ser eliminadas faticamente, é certo que a ordem processual-constitucional deve procurar evitar o surgimento dessas distorções.

 

A aferição da constitucionalidade de uma lei que teve a sua legitimidade reconhecida deve ser admitida com base no argumento de que a lei pode ter-se tornado inconstitucional após a decisão da Corte. (...). Embora não se compatibilize com a doutrina geral da coisa julgada, essa orientação sobre os limites da coisa julgada no âmbito das decisões da Corte Constitucional é amplamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Não se controverte, pois, sobre a necessidade de que se considere eventual mudança das ‘relações fáticas’. Nossos conhecimentos sobre o processo de mutação constitucional exigem, igualmente, que se admita nova aferição da constitucionalidade da lei no caso de mudança da concepção constitucional” (Brun-Otto Bryde, Verfassungsengsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrechf der Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 412-413).

 

Em síntese, declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á de concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe uma vez mais da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes [BVerfGE 33/199 e 39/169; BrunOtto Bryde, Verfassungsengsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrechf der Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 409; Hans Brox, Zur Zulässigkeit der erneuten Überprüfung einer Norm durch das Bundesverfassungsgericht, in Festschrift für Willi Geiger, cit., p. 809 (818); Stern, Bonner Kommentar, 2. tir., art. 100, n. 139; Christoph Gusy, Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, cit., p. 228].

 

Como ensinado por Liebman, com arrimo em Savigny (Enrico Tullio Liebman, Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 25-26), as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, de modo que as alterações posteriores que alterem a realidade normativa, bem como eventual modificação da orientação jurídica sobre a matéria, podem tornar inconstitucional norma anteriormente considerada legítima (inconstitucionalidade superveniente) [Cf., também, entre outros, Adolf Schönke, Derecho procesal civil, tradução da 5. ed. alemã. Barcelona, 1950, p. 273 e s].

 

Daí parecer plenamente legítimo que se suscite perante o STF a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional. Há muito a jurisprudência constitucional reconhece expressamente a possibilidade de alteração da coisa julgada provocada por mudança nas circunstâncias fáticas (cf., a propósito, RE 105.012, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 1º.7.1988).

 

Assim, tem-se admitido a possibilidade de que o Tribunal, em virtude de evolução hermenêutica, modifique jurisprudência consolidada, podendo censurar preceitos normativos antes considerados hígidos em face da Constituição.

 

No âmbito do controle incidental ou difuso de constitucionalidade, essa hipótese não é incomum, e acaba sendo facilitada pela constante possibilidade de reapreciação do tema nos diversos processos que envolvem controvérsias de índole subjetiva. A jurisprudência do STF é repleta de casos como este. Dentre outros, citem-se os seguintes: INQ 687, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 9.11.2001; CC n° 7.204/MG, Rel. Min. Carlos Britto, julg. em 29.6.2005; HC n° 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 1º.9.2006; RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 5.6.2009; RE 349.703, Rel. p. acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ 5.6.2009).

 

No controle abstrato de constitucionalidade, por outro lado, a oportunidade de reapreciação ou de superação de jurisprudência fica a depender da propositura de nova ação direta contra o preceito anteriormente declarado constitucional. Parece evidente, porém, que essa hipótese de nova ação é de difícil concretização, levando-se em conta o delimitado rol de legitimados (art. 103 da Constituição) e o improvável ressurgimento da questão constitucional, em searas externas aos processos subjetivos, com força suficiente para ser levada novamente ao crivo do STF no controle abstrato de constitucionalidade.

 

A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no “balançar de olhos” entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para a evolução interpretativa no controle de constitucionalidade.

 

Assim, ajuizada a reclamação com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição.

 

Parece óbvio que a diferença entre a redefinição do conteúdo e a completa superação de uma decisão resume-se a uma simples questão de grau.

 

No juízo hermenêutico próprio da reclamação, a possibilidade constante de reinterpretação da Constituição não fica restrita às hipóteses em que uma nova interpretação leve apenas à delimitação do alcance de uma decisão prévia da própria Corte. A jurisdição constitucional exercida no âmbito da reclamação não é distinta; como qualquer jurisdição de perfil constitucional, ela visa a proteger a ordem jurídica como um todo, de modo que a eventual superação total, pelo STF, de uma decisão sua, específica, será apenas o resultado do pleno exercício de sua incumbência de guardião da Constituição.

 

Esses entendimentos seguem a tendência da evolução da reclamação como ação constitucional voltada à garantia da autoridade das decisões e da competência do Supremo Tribunal Federal. Desde o seu advento, fruto de criação jurisprudencial1, a reclamação tem-se firmado como importante mecanismo de tutela da ordem constitucional.

 

Como é sabido, a reclamação para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal ou garantir a autoridade de suas decisões é fruto de criação pretoriana. Afirmava-se que ela decorreria da ideia dos implied powers deferidos ao Tribunal. O Supremo Tribunal Federal passou a adotar essa doutrina para a solução de problemas operacionais diversos. A falta de contornos definidos sobre o instituto da reclamação fez, portanto, com que a sua constituição inicial repousasse sobre a teoria dos poderes implícitos2.

 

Em 1957 aprovou-se a incorporação da Reclamação no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

 

A Constituição Federal de 19673, que autorizou o STF a estabelecer a disciplina processual dos feitos sob sua competência, conferindo força de lei federal às disposições do Regimento Interno sobre seus processos, acabou por legitimar definitivamente o instituto da reclamação, agora fundamentada em dispositivo constitucional.

 

Com o advento da Carta de 1988, o instituto adquiriu, finalmente, status de competência constitucional (art. 102, I, l). A Constituição consignou, ainda, o cabimento da reclamação perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, f), igualmente destinada à preservação da competência da Corte e à garantia da autoridade das decisões por ela exaradas.

 

Com o desenvolvimento dos processos de índole objetiva em sede de controle de constitucionalidade no plano federal e estadual (inicialmente representação de inconstitucionalidade e, posteriormente, ADI, ADIO, ADC e ADPF), a reclamação, na qualidade de ação especial, acabou por adquirir contornos diferenciados na garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal ou na preservação de sua competência.

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal, no tocante à utilização do instituto da reclamação em sede de controle concentrado de normas, também deu sinais de grande evolução no julgamento da questão de ordem em agravo regimental na Rcl. n.º 1.880, em 23 de maio de 2002, quando, no Tribunal, restou assente o cabimento da reclamação para todos aqueles que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às teses do STF, em reconhecimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle concentrado.

 

Ressalte-se, ainda, que a EC n. 45/2004 consagrou a súmula vinculante, no âmbito da competência do Supremo Tribunal, e previu que a sua observância seria assegurada pela reclamação (art. 103-A, § 3º – “Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso”).

 

A tendência hodierna, portanto, é de que a reclamação assuma cada vez mais o papel de ação constitucional voltada à proteção da ordem constitucional como um todo. Os vários óbices à aceitação da reclamação em sede de controle concentrado já foram superados, estando agora o Supremo Tribunal Federal em condições de ampliar o uso desse importante e singular instrumento da jurisdição constitucional brasileira.

 

Assim, é plenamente possível entender que o Tribunal, por meio do julgamento desta reclamação, possa revisar a decisão na ADI 1.232 e exercer novo juízo sobre a constitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993 (Lei de Organização da Assistência Social – LOAS). Ressalte-se, nesse aspecto, que a recente Lei 12.435/2011 não alterou a redação do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993.

 

  

A seguir, apresento as razões que, reveladoras de um processo de evolução interpretativa no controle de constitucionalidade, podem justificar a completa superação da decisão na ADI 1.232: a) a possível omissão inconstitucional parcial em relação ao dever constitucional de efetivar a norma do art. 203, V, da Constituição; b) o processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei n° 8.742/93.

 

3. O JULGAMENTO DA ADI 1.232 E A POSSÍVEL CONSTATAÇÃO DA OMISSÃO INCONSTITUCIONAL PARCIAL EM RELAÇÃO AO DEVER CONSTITUCIONAL DE EFETIVAR O COMANDO DO ART. 203, V, DA CONSTITUIÇÃO.

 

O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232 é representativo daqueles momentos em que uma Corte Constitucional decide impregnada do sentimento de que em algum momento sua decisão certamente será revista. Uma atitude de self restraint que, ante uma questão social tão complexa e importante, deixou no ar a impressão de que algo não estava bem. Naquela ocasião, o Tribunal proferiu decisão pela improcedência da ação direta, mas não deixou de constatar que o dispositivo questionado – o art. 20 da Lei n° 8.742/93 – era insuficiente para cumprir integralmente o comando constitucional do art. 203, V, da Constituição da República.

 

O Ministro Ilmar Galvão, Relator da ação, seguindo o parecer do Procurador-Geral da República, entendeu que, de fato, não haveria nenhuma inconstitucionalidade no estabelecimento de um critério objetivo – a renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo – para aferição da incapacidade econômica da família do portador de deficiência ou do idoso. Ponderou, no entanto, que o único critério – de caráter objetivo e econômico – estabelecido pela lei não poderia limitar outros meios de prova sobre a situação de miserabilidade da família do portador de deficiência ou do idoso.

 

Em seu entender, esse critério seria muito restrito e o entendimento segundo o qual ele seria o único possível afastaria grande parte dos destinatários do benefício assistencial protegido pelo art. 203, V, da Constituição.

 

O Ministro Nelson Jobim trouxe então a solução lógica: se a Constituição dispõe que cabe à lei definir os critérios para concessão do benefício assistencial, e se a lei definiu um único critério, de caráter objetivo, que considera o valor certo de ¼ do salário mínimo como patamar máximo da renda per capita; logo, esse é o único critério aplicável à concessão do benefício, cabendo apenas ao legislador a criação de outros critérios. Portanto, segundo o Ministro Jobim, o Tribunal não poderia nem declarar a inconstitucionalidade do art. 20 da LOAS nem interpretá-lo para permitir outros critérios não estabelecidos em lei.

 

O raciocínio lógico do Ministro Jobim exerceu forte influência naquele julgamento e acabou levando o Tribunal a adotar uma posição de autocontenção ante a constatação da insuficiência da legislação definidora dos critérios para a concessão do benefício assistencial. Como afirmou o Min. Jobim na ocasião, “compete à lei dispor a forma de comprovação; se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da lei”.

 

A prevalência da solução lógica não foi capaz de dar uma resposta satisfatória para o problema – por todos reconhecido – da insuficiência da legislação. A atitude de self restraint acabou deixando aberta a questão quanto à omissão legislativa no cumprimento do inciso V do art. 203 da Constituição. A Corte proferiu uma decisão consistente, bem fundamentada do ponto de vista lógico, mas não resolveu o problema constitucional (substancial) que lhe foi posto naquela ADI 1.232.

 

A omissão legislativa quanto ao cumprimento do art. 203, V, da Constituição, foi constatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence em seu voto. O Ministro Pertence, no entanto, deixou claro que, naquela ocasião, o problema da omissão legislativa não poderia ser resolvido por meio da ação direta de inconstitucionalidade. Transcrevo o voto do Ministro Sepúlveda Pertence proferido na ADI 1.232:

 

“Senhor Presidente, considero perfeita a inteligência dada ao dispositivo constitucional, no parecer acolhido pelo Relator, no sentido de que o legislador deve estabelecer outras situações caracterizadoras da absoluta incapacidade de manter-se o idoso ou o deficiente físico, a fim de completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no art. 203 da Constituição. A meu ver, isso não a faz inconstitucional nem é preciso dar interpretação conforme à lei que estabeleceu uma hipótese objetiva de direito à prestação assistencial do Estado. Haverá, aí, inconstitucionalidade por omissão de outras hipóteses? A meu ver, certamente sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta”.

Como se vê, o voto do Ministro Pertence já enfatizava a insuficiência e, portanto, a omissão inconstitucional parcial presente do art. 20 da Lei no 8.742/1993 (Lei de Organização da Assistência Social – LOAS). As considerações do Min. Pertence naquela ocasião revelam a posição adotada pelo Tribunal no julgamento da ADI 1.232. Já se fazia claro, no entendimento de todos os Ministros que participaram daquele julgamento e igualmente do Procurador-Geral da República, que o critério objetivo previsto na LOAS não era por si só inconstitucional, mas, por outro lado, era visivelmente insuficiente para possibilitar a efetividade do benefício assistencial assegurado pelo art. 203, V, da Constituição. A Corte, seguindo a proposta do Ministro Jobim, acabou entendendo que esse problema da omissão inconstitucional não poderia ser resolvido por meio da ação direta de inconstitucionalidade, bastando, portanto, julgar improcedente a ação. Recorde-se que, naquele momento, o Tribunal mantinha firme posicionamento no sentido da infungibilidade entre as ações diretas de inconstitucionalidade por ação e por omissão (ADI 986, Relator Néri da Silveira, DJ 8.4.1994), assim como entendia que a constatação da omissão inconstitucional apenas deveria ser comunicada ao legislador.

 

A decisão do Tribunal, de simplesmente julgar improcedente a ação, deixou em aberto o problema da omissão inconstitucional presente na LOAS, criando condições propícias para as reações dos mais diversos juízes e tribunais (principalmente dos Juizados Especiais) ao longo de todo o país, os quais, ao se depararem com complexas situações de miserabilidade social, tiveram que adotar interpretações criativas do art. 20 da LOAS para tentar dar maior efetividade ao art. 203, V, da Constituição da República. Esse fenômeno já foi descrito acima. O importante a enfatizar aqui é que a atitude desses juízes e tribunais – cujas decisões muitas vezes foram cassadas por decisões desta Corte que, em sede de reclamação, visavam proteger a autoridade da decisão proferida na ADI 1.232 – nada mais foi do que a consequência desse estado de insuficiência legislativa não enfrentado pelo Tribunal por ocasião do julgamento da ADI 1.232. Ante um quadro de insuficiência normativa, não se podia exigir outra postura desses juízes. Os critérios criados e  posteriormente sumulados pelos Juizados Especiais visavam apenas a preencher a patente lacuna normativa em tema de assistência social do idoso e do deficiente.

 

A norma constitucional do art. 203, V, da Constituição foi introduzida no constitucionalismo brasileiro no bojo de uma ambiciosa agenda social instituída pela Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”. A ênfase em uma agenda social está estampada logo no início da Carta Constitucional. No artigo 3º, a Constituição declara que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos. Tem-se uma Carta que, ao lado das disposições tradicionais sobre o modelo democrático, consagra um amplo catálogo garantidor dos direitos individuais, e incorpora um número elevado de direitos sociais. A Constituição consagra, entre direitos de perfil fortemente programático, o direito a um salário mínimo capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador urbano e rural (art. 7º, IV), e à assistência social para todos aqueles que dela necessitarem (art. 203).

 

Assim, a assistência social (art. 203) compõe o extenso rol de promessas de democracia substantiva proclamadas na Carta de 1988. Como se sabe, a Constituição de 1988, aprovada num contexto econômico e social difícil (a inflação acumulada do ano de 1988 foi de 1.037,56%), faz uma clara opção pela democracia e uma sonora declaração em favor da superação das desigualdades sociais. O novo modelo constitucional claramente buscou superar, institucionalmente, o modelo de democracia meramente formal ao qual nós estávamos acostumados no passado. Tentava-se, também pela via da constitucionalização de direitos sociais, e da criação de instrumentos de judicialização dessas pretensões de caráter positivo, superar o quadro de imensas desigualdades acumuladas ao longo dos anos. O “milagre econômico” da década de 1970 não tinha sido capaz de eliminar a pobreza e a miséria. Também não houve redução da desigualdade na distribuição da renda e da riqueza. E não foram poucos os grupos sociais que permaneceram à margem de qualquer benefício. A chamada “década perdida” de 1980 contribuiu certamente para agravar os problemas sociais, com o aumento do contingente de pobres e miseráveis e da própria desigualdade.

 

Assim, há que se levar em conta que a institucionalização da democracia em 1988 veio acompanhada de uma agenda social que, em muito, transcende os aspectos meramente formais. Optou-se por um modelo constitucional fortemente dirigente, que, de forma extremamente analítica, disciplinou uma série de questões da vida nacional. Em um país como o Brasil, em que o acesso a direitos sociais básicos ainda não é garantido a milhões de pessoas, não surpreende a generosidade do Poder Constituinte que, em síntese, traduziu essa perspectiva de que o Estado constitucional também é um espaço de síntese e de proclamação de esperanças que, historicamente, foram esquecidas. Recorde-se, aqui, a lição de Peter Häberle, no sentido de que o tema do Estado constitucional toca, ao mesmo tempo, a ratio e a emotio e traz consigo o princípioesperança. Na visão de Häberle, tanto a teoria da Constituição como o tipo de Estado constitucional devem conceder ao ser humano um espaço para um “quantum de utopia”, não só na forma de ampliação dos limites das liberdades, mas, também, de uma maneira mais intensa, na medida em que os textos constitucionais disponham sobre esperanças4.

 

Em momentos de reflexão sobre o problema posto neste processo, li com atenção as atas das sessões constituintes realizadas no Congresso Nacional em abril de 1987 (Câmara dos Deputados, Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 21 de maio de 1987). Não posso reproduzir aqui todos os trechos interessantes. Posso confirmar, não obstante, que neles se torna visível o sentimento de esperança que pairou no conjunto das sessões constituintes nas quais se discutiu a respeito da garantia do benefício de um salário mínimo aos portadores de deficiência. Uma vez positivadas no texto constitucional, essas esperanças deixaram de ser meramente promessas e se converterem em um verdadeiro projeto de ação.

 

Não se pode olvidar, nessa perspectiva, o papel positivo cumprido por este constitucionalismo por alguns denominado de “simbólico” 5 , ao impor ao Estado uma incessante busca pela efetiva implementação de anseios sociais básicos. A Constituição de 1988 proclama a assistência social como um programa de ação positiva do Estado brasileiro. Não há mais espaço para considerações de tipo político e econômico sobre a conveniência da concessão do benefício assistencial ou sobre o valor desse benefício (um salário mínimo). O benefício e seu correspondente valor estão consagrados na Constituição e assim ficam protegidos contra qualquer tentativa de reforma.

 

Assim, ao contrário de outras ordens jurídicas, que preferiram não estampar no texto constitucional promessas sociais mais ambiciosas, a ordem constitucional brasileira protege a assistência social e, especificamente o benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição de 1988, como um verdadeiro direito fundamental exigível perante o Estado. Esse direito ao benefício assistencial de um salário mínimo possui uma dimensão subjetiva, que o torna um típico direito público subjetivo de caráter positivo, o qual impõe ao Estado obrigações de ordem normativa e fática. Trata-se, nesse sentido, de um direito à prestação em face do Estado, o qual fica obrigado a assegurar as condições normativas (edição de normas e conformação de órgãos e procedimentos) e fáticas (manutenção de um estado de coisas favorável, tais como recursos humanos e financeiros) necessárias à efetividade do direito fundamental.

 

Além de uma dimensão subjetiva, portanto, esse direito fundamental também possui uma complementar dimensão objetiva. Nessa dimensão objetiva, o direito fundamental à assistência social assume o importante papel de norma constitucional vinculante para o Estado, especificamente, para os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Ela assim impõe ao Legislador um dever constitucional de legislar, o qual deve ser cumprido de forma adequada, segundo os termos do comando normativo previsto no inciso V do art. 203 da Constituição. O não cumprimento total ou parcial desse dever constitucional de legislar gera, impreterivelmente, um estado de proteção insuficiente do direito fundamental. Destarte, como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot)6.

 

A violação, pelo legislador, dessa proibição de proteção insuficiente decorrente do direito fundamental gera um estado de omissão inconstitucional submetido ao controle do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorre não exatamente em razão da ausência de legislação, ou tendo em vista eventual mora do legislador em regulamentar determinada norma constitucional, mas quando o legislador atua de forma insuficiente, isto é, edita uma lei que cumpre apenas de forma parcial o comando constitucional.

 

Tendo em vista o direito fundamental ao benefício assistencial previsto no inciso V do art. 203 da Constituição, parece sensato considerar a omissão legislativa parcial no tocante ao § 3º do art. 20 da LOAS. O próprio histórico da concessão judicial desse benefício, tal como acima apresentado, demonstra cabalmente a insuficiência da LOAS em definir critérios para a efetividade desse direito fundamental. E, como já demonstrado, a omissão legislativa foi verificada pelo próprio Tribunal no julgamento da ADI 1.232.

 

O fato é que, hoje, o Supremo Tribunal Federal, muito provavelmente, não tomaria a mesma decisão que foi proferida, em 1998, na ADI 1.232. A jurisprudência atual supera, em diversos aspectos, os entendimentos naquela época adotados pelo Tribunal quanto ao tratamento da omissão inconstitucional. A Corte tem avançado substancialmente nos últimos anos, principalmente a partir do advento da Lei n.° 9.868/99, cujo art. 27 abre um leque extenso de possibilidades de soluções diferenciadas para os mais variados casos de omissão inconstitucional.

 

É certo que, inicialmente, o Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento segundo o qual a decisão que declara a inconstitucionalidade por omissão autorizaria o Tribunal apenas a cientificar o órgão inadimplente para que este adotasse as providências necessárias à superação do estado de omissão inconstitucional. Assim, reconhecida a procedência da ação, deveria o órgão legislativo competente ser informado da decisão, para as providências cabíveis.

 

Em julgado recente (do ano de 2007), porém, o Tribunal passou a considerar a possibilidade de, em alguns casos específicos, indicar um prazo razoável para a atuação legislativa, ressaltando as consequências desastrosas para a ordem jurídica da inatividade do legislador no caso concreto (ADI n.° 3.682, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 6.9.2007). O caso referia-se à omissão inconstitucional quanto à edição da lei complementar de que trata o art. 18, § 4º, da Constituição, definidora do período dentro do qual poderão tramitar os procedimentos tendentes à criação, incorporação, desmembramento e fusão de municípios. Na ocasião, a Corte declarou o estado de mora em que se encontrava o Congresso Nacional e determinou que, no prazo de 18 (dezoito) meses, adotasse ele todas as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto pelo art. 18, § 4º, da Constituição, devendo ser contempladas as situações imperfeitas decorrentes do estado de inconstitucionalidade gerado pela omissão.

 

 

Na mesma ocasião, o Tribunal avançou no tema da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade. No julgamento do conhecido caso do Município de Luís Eduardo Magalhães (ADI n.° 2.240, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 3.8.2007), o Tribunal, aplicando o art. 27 da Lei n.° 9.868/99, declarou a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade da lei impugnada (Lei n.° 7.619, de 30 de março de 2000, do Estado da Bahia), mantendo sua vigência pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, lapso temporal razoável dentro do qual pode o legislador estadual reapreciar o tema, tendo como base os parâmetros que devem ser fixados na lei complementar federal, conforme decisão da Corte na ADI 3.682.

 

Em tema de omissão inconstitucional, o Tribunal já vem adotando, inclusive, típicas sentenças de perfil aditivo, tal como ocorreu no conhecido caso do direito de greve dos servidores públicos. Como se sabe, no Mandado de Injunção n. 20 (Rel. Celso de Mello, DJ de 22-11-1996), firmou-se entendimento no sentido de que o direito de greve dos servidores públicos não poderia ser exercido antes da edição da lei complementar respectiva, com o argumento de que o preceito constitucional que reconheceu o direito de greve constituía norma de eficácia limitada, desprovida de autoaplicabilidade. Na mesma linha, foram as decisões proferidas nos MI 485 (Rel. Maurício Corrêa, DJ de 23-8-2002) e MI 585/TO (Rel. Ilmar Galvão, DJ de 2-8-2002). Assim, nas diversas oportunidades em que o Tribunal se manifestou sobre a matéria, reconheceu-se unicamente a necessidade de se editar a reclamada legislação, sem admitir uma concretização direta da norma constitucional.

 

Em 25 de outubro de 2007, o Supremo Tribunal Federal, em mudança radical de sua jurisprudência, reconheceu a necessidade de uma solução obrigatória da perspectiva constitucional e declarou a inconstitucionalidade da omissão legislativa, com a aplicação, por analogia, da Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve na iniciativa privada. Afastando-se da orientação inicialmente perfilhada no sentido de estar limitada à declaração da existência da mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica, o Tribunal, sem assumir compromisso com o exercício de uma típica função legislativa, passou a aceitar a possibilidade de uma regulação provisória do tema pelo próprio Judiciário. O Tribunal adotou, portanto, uma moderada sentença de perfil aditivo, introduzindo modificação substancial na técnica de decisão do mandado de injunção (MI 670, Rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes; MI 708, Rel. Min. Gilmar Mendes e MI 712, Rel. Min. Eros Grau).

 

Ressalte-se, ainda, que recentemente o Supremo Tribunal Federal reviu sua antiga jurisprudência e passou a adotar o entendimento segundo o qual existe uma fungibilidade entre as ações diretas de inconstitucionalidade por ação e por omissão (ADI 875, 1987, 2727, 3243, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 29.4.2010). Na ocasião, o Tribunal reconheceu a omissão parcial quanto à regulamentação do art. 161, II, da Constituição, segundo o qual lei complementar deve estabelecer os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados, com a finalidade de promover o equilíbrio socioeconômico entre os entes federativos. A Corte então adotou técnica diferenciada de decisão, aplicando o art. 27 da Lei n.° 9.868/99, para declarar a inconstitucionalidade, sem a pronúncia da nulidade, do art. 2º, incisos I e II, §§ 1º, 2º e 3º, e do Anexo Único, da Lei Complementar n.º 62/1989 (Lei dos Fundos de Participação dos Estados), assegurando a sua aplicação até 31 de dezembro de 2012.

 

Portanto, o Supremo Tribunal Federal já dispõe de um arsenal diversificado de técnicas de decisão para enfrentar os problemas de omissão inconstitucional. Hoje, a ADI 1.232 poderia ter sido decidida de forma completamente diferente, sem a necessidade da adoção de posturas de autocontenção por parte da Corte, como ocorreu naquele caso.

 

Após muito refletir sobre o problema posto no presente processo, creio que seria o caso de se adotar uma decisão parecida com a que o Tribunal Constitucional Federal alemão proferiu no caso Hartz IV, em nove de fevereiro de 2010, declarando a inconstitucionalidade da lei que instituiu novos benefícios sociais, mas mantendo-a válida até o final do ano seguinte, tempo suficiente para que os Poderes Executivo e Legislativo refizessem os cálculos orçamentários e construíssem novos critérios.

 

A Lei do Hartz IV fez alterações no sistema de assistência social da Alemanha e unificou os benefícios de auxílio-desemprego (Arbeitslosenhilfe) e da assistência social (Sozialhilfe), criando um novo “auxílio desemprego II” (Arbeitslosenhilfe II). Este é destinado a pessoas que, ainda que aptas ao mercado de trabalho, estejam desempregadas.

 

Um novo direito à assistência social foi regulado e destinado aos dependentes dos beneficiários do auxílio-desemprego II, desde que juntos formem a chamada “comunidade de necessidade” (Bedarfsgemeinschaft), denominação utilizada para designar grupos de pessoas que precisam custear em conjunto suas despesas e não possuem condições para tanto.

 

O benefício-padrão (Regelleistung) do auxílio-desemprego instituído pela Lei do Hartz IV é um montante fixo que abrange necessidades consideradas básicas de sobrevivência, como roupa, alimentação, higiene pessoal. Já o montante do benefício social pago aos dependentes dos beneficiários do auxílio desemprego II é auferido com base em porcentagens do benefício-padrão, considerando a idade do destinatário. Previa-se, por exemplo, que crianças receberiam, até o final de seus 14 anos, o valor de 60% do benefíciopadrão e, a partir dos 15 anos, 80%.

 

Para definir os critérios de qual porcentagem deveria ser atribuída a determinada faixa etária, o legislador alemão baseou-se em procedimento de cálculo que levava em consideração um modelo estatístico elaborado a partir das necessidades da sociedade alemã.

 

Já em vigor, tais porcentagens sofreram diversas críticas, que resultaram em regras complementares, com a finalidade de compensar certas discrepâncias. Entretanto, o argumento de que o valor destinado às crianças seria muito baixo e não estaria de acordo com a garantia do mínimo existencial foi o principal fundamento de três casos submetidos ao Tribunal Constitucional Federal alemão.

 

Para formar seu entendimento, a Corte constitucional ouviu o Governo, os requerentes e entidades interessadas na causa. Ao decidir, indicou que o benefício deve ser suficiente para garantir o mínimo existencial dos seus destinatários. Essa assertiva está fundamentada no art. 1 I da Lei Fundamental, que considera a dignidade da pessoa humana como inviolável e obriga todos os poderes do Estado a observá-la e protegê-la.

 

Entretanto, o Tribunal alemão deixou claro que a extensão da pretensão ao direito assistencial não encontra definição na Lei Fundamental, mas depende de quantificação e aferições fáticas que a Carta Constitucional não teria como prever. Dessa forma, cabe ao legislador concretizar o montante que garantiria esse mínimo existencial, com base em um padrão adequado às necessidades reais da sociedade a qual está relacionado. Ao Tribunal, compete verificar a adequabilidade dos princípios e métodos adotados quando da criação do benefício.

 

Para tanto, a Corte utilizou-se de informações fornecidas pelos interessados e de estudos sobre o tema. Após criteriosa análise, concluiu que o modelo estatístico, que embasou o valor do benefício-padrão, seria constitucionalmente aceitável, uma vez que se fundamenta em estudo empírico da população. Entretanto, as bases deste método teriam sido alterados sem nenhuma justificativa aceitável, resultando em um valor final que não estava calcado em nenhuma tese formal.

 

Mesma apreciação foi feita em relação às porcentagens atribuídas às faixas etárias. A Corte manifestou-se no sentido de que o legislador não considerou as necessidades específicas das crianças, ignorando que, dependendo de sua idade, há despesas diferenciadas. Foram indicados estudos que comprovam que deveria haver várias faixas de classificação, e não apenas duas, como previsto na lei.

 

Com isso, esses aspectos da Lei do Hartz IV foram declarados inconstitucionais pelo Tribunal, que entendeu, entretanto, que sua pronúncia de nulidade poderia gerar uma situação pior da que a já vigente. Ao seguir o princípio de que o estabelecimento do benefício é atribuição do legislador, a quem compete defini-lo, com base em critérios e estimativas próprias, desde que bem fundamentadas, o Tribunal decidiu que estes dispositivos, ainda que inconstitucionais, deveriam permanecer aplicáveis até que nova legislação fosse elaborada. Para isso, foi fixado um prazo ao legislador estabelecer um novo procedimento, compatível com a Lei Fundamental – no caso, 31 de dezembro de 2010, final do ano seguinte à decisão.

 

A decisão do Tribunal Constitucional alemão no caso Hartz IV traz novas luzes para a decisão no presente caso.

 

4. O PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO § 3º DO ART. 20 DA LEI N° 8.742/93 (LOAS).

Na ADI 1.232, como visto, o Tribunal decidiu que o critério definido pelo § 3º do art. 2º da LOAS não padecia, por si só, de qualquer inconstitucionalidade. Haveria omissão legislativa quanto a outros critérios, mas aquele único critério já definido pela lei não continha qualquer tipo de violação à norma constitucional do art. 203, V, da Constituição.

 

A decisão do Tribunal foi proferida no ano de 1998, poucos anos após a edição da LOAS (de 1993), num contexto econômico e social específico. Na década de 1990, a renda familiar per capita no valor de ¼ do salário mínimo foi adotada como um critério objetivo de caráter econômico-social, resultado de uma equação econômico-financeira levada a efeito pelo legislador tendo em vista o estágio de desenvolvimento econômico do país no início da década de 1990.

 

É fácil perceber que a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. Desde a promulgação da Constituição foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas, com repercussão no âmbito econômico, financeiro e administrativo. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma significativa melhoria da distribuição de renda. Os gastos públicos estão hoje disciplinados por Lei de Responsabilidade Fiscal, que prenuncia certo equilíbrio e transparência nas contas públicas federais, estaduais e municipais. Esse processo de reforma prosseguiu com a aprovação de uma reforma mais ampla do sistema de previdência social (Emenda 41, de 2003) e uma parcial reforma do sistema tributário nacional (Emenda 42, de 2003).

 

Nesse contexto de significativas mudanças econômico-sociais, as legislações em matéria de benefícios previdenciários e assistenciais trouxeram critérios econômicos mais generosos, aumentando para ½ do salário mínimo o valor padrão da renda familiar per capita. Por exemplo, citem-se os seguintes.

 

O Programa Nacional de Acesso à Alimentação – Cartão Alimentação foi criado por meio da Medida Provisória n.º 108, de 27 de fevereiro de 2003, convertida posteriormente na Lei n.º 10.689, de 13 de junho de 2003. A regulamentação se deu por meio do Decreto n.º 4.675, de 16 de abril de 2003. O Programa Bolsa Família – PBF foi criado por meio da Medida Provisória n.º 132, de 20 de outubro de 2003, convertida na Lei n.º 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Sua regulamentação ocorreu em 17 de setembro de 2004, por meio do Decreto n.º 5.209.

 

Com a criação do Bolsa Família, outros programas e ações de transferência de renda do Governo Federal foram unificados: Programa Nacional de Renda Mínima Vinculado à Educação – Bolsa Escola (Lei 10.219/2001); Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA (Lei 10.689 de 2003); Programa Nacional de Renda Mínima Vinculado à Saúde – Bolsa Alimentação (MP 2.206-1/2001) Programa Auxílio-Gás (Decreto n.º 4.102/2002); Cadastramento Único do Governo Federal (Decreto 3.811/2001).

 

Portanto, os programas de assistência social no Brasil utilizam, atualmente, o valor de ½ salário mínimo como referencial econômico para a concessão dos respectivos benefícios. Tal fato representa, em primeiro lugar, um indicador bastante razoável de que o critério de ¼ do salário mínimo utilizado pela LOAS está completamente defasado e mostra-se atualmente inadequado para aferir a miserabilidade das famílias que, de acordo com o art. 203, V, da Constituição, possuem o direito ao benefício assistencial. Em segundo lugar, constitui um fato revelador de que o próprio legislador vem reinterpretando o art. 203 da Constituição da República segundo parâmetros econômico-sociais distintos daqueles que serviram de base para a edição da LOAS no início da década de 1990. Esses são fatores que razoavelmente indicam que, ao longo dos vários anos desde a sua promulgação, o § 3º do art. 20 da LOAS passou por um processo de inconstitucionalização.

 

Portanto, além do já constatado estado de omissão inconstitucional, estado este que é originário em relação à edição da LOAS em 1993 (uma inconstitucionalidade originária, portanto), hoje se pode verificar também a inconstitucionalidade (superveniente) do próprio critério definido pelo § 3º do art. 20 da LOAS. Trata-se de uma inconstitucionalidade que é resultado de um processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro).

 

É certo que não cabe ao Supremo Tribunal Federal avaliar a conveniência política e econômica de valores que podem ou devem servir de base para a aferição de pobreza. Tais valores devem ser o resultado de complexas equações econômico-financeiras que levem em conta, sobretudo, seus reflexos orçamentários e macroeconômico e que, por isso, devem ficar a cargo dos setores competentes dos Poderes Executivo e Legislativo na implementação das políticas de assistencialismo definidas na Constituição.

 

No processo de reflexão e construção da presente decisão, realizei diversas reuniões com as autoridades competentes do Ministério do Desenvolvimento Social (Secretaria Nacional de Assistência Social, Departamento de Benefícios Assistenciais), do Instituto Nacional do Seguro Social e da Advocacia-Geral da União (inclusive a Procuradoria-Geral Federal). Há uma constante preocupação com o impacto orçamentário de uma eventual elevação do atual critério de ¼ do salário mínimo para ½ salário mínimo. Estudos realizados pelo IPEA e pelo MDS, em janeiro de 2010, demonstram que, se viesse a vigorar o critério de renda per capita no valor de ½ salário mínimo, os recursos necessários para investimento no BPC em 2010 chegariam a R$ 46,39 bilhões, ou seja, 129,72% a mais do que a projeção do ano (R$ 20,06 bilhões). As análises são demonstradas no quadro abaixo:

 

Demonstrativo das projeções para 2010 de beneficiários e recursos necessários para a manutenção do BPC em cenários com distintos valores per capita e segundo o conceito de família atual e comparação com a projeção referente aos critérios atuais.

 

No original, aqui existe uma tabela!  

 

De fato, a análise sobre a adequação do critério de ¼ do salário mínimo não pode desconsiderar o fato de que, num quadro de crescente desenvolvimento econômico e social, também houve um vertiginoso crescimento da quantidade de benefícios assistenciais concedidos pelo Estado brasileiro. De aproximadamente 500.000 (quinhentos mil) benefícios concedidos em 1996, a quantidade de idosos e deficientes beneficiários passou para atuais 3.644.591 (três milhões, seiscentos e quarenta e quatro mil, quinhentos e noventa e um) (Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS). Em média, é gasto mensalmente 2 (dois) milhões de reais com esse benefício. Em valores acumulados até o último mês de abril de 2012, o custo total desses benefícios neste ano foi de 8.997.587.360 (oito bilhões, novecentos e noventa e sete milhões, quinhentos e oitenta e sete mil, trezentos e sessenta). Assim, tudo indica que, até o final deste ano de 2012, o custo anual do benefício assistencial será superior a 24 bilhões de reais.

 

Não se pode perder de vista nesse contexto que, no mesmo período avaliado, o salário mínimo sofreu significativos aumentos. A atual perspectiva econômica é de que o valor real do salário mínimo continue aumentando constantemente ao longo dos anos. Isso certamente terá um relevante impacto, nos próximos anos, sobre o custo total do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição.

 

O certo é que são vários os componentes socioeconômicos a serem levados em conta na complexa equação necessária para a definição de uma eficiente política de assistência social, tal como determina a Constituição de 1988. Seria o caso de se pensar, inclusive, em critérios de miserabilidade que levassem em conta as disparidades socioeconômicas nas diversas regiões do país. Isso porque, como parece sensato considerar, critérios objetivos de pobreza, válidos em âmbito nacional, terão diferentes efeitos em cada região do país, conforme as peculiaridades sociais e econômicas locais.

 

Em todo caso, o legislador deve tratar a matéria de forma sistemática. Isso significa dizer que todos os benefícios da seguridade social (assistenciais e previdenciários) devem compor um sistema consistente e coerente. Com isso, podem-se evitar incongruências na concessão de benefícios, cuja consequência mais óbvia é o tratamento anti-isonômico entre os diversos beneficiários das políticas governamentais de assistência social. Apenas para citar um exemplo, refira-se ao Estatuto do Idoso, que em seu art. 34 dispõe que “o benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas”. Não se vislumbra qualquer justificativa plausível para a discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos. Imagine-se a situação hipotética de dois casais, ambos pobres, sendo o primeiro composto por dois idosos e o segundo por um portador de deficiência e um idoso. Conforme a dicção literal do referido art. 34, quanto ao primeiro casal, ambos os idosos tem direito ao benefício assistencial de prestação continuada; entretanto, no segundo caso, o idoso casado com o deficiente não pode ser beneficiário do direito, se o seu parceiro portador de deficiência já recebe o benefício. Isso claramente revela a falta de coerência do sistema, tendo em vista que a própria Constituição elegeu os portadores de deficiência e os idosos, em igualdade de condições, como beneficiários desse direito assistencial.

 

 

Registre-se, ainda, que, conforme esse mesmo art. 34 do Estatuto do Idoso, o benefício previdenciário de aposentadoria, ainda que no valor de um salário mínimo, recebido por um idoso, também obstaculiza a percepção de benefício assistencial pelo idoso consorte, pois o valor da renda familiar per capita superaria ¼ do salário mínimo definido pela Lei 8.742/1993 como critério para aferir a hipossuficiência econômica, já que benefícios previdenciários recebidos por idosos não são excluídos do cálculo da renda familiar.

 

Em consequência, o sistema acaba por desestimular a contribuição à previdência social, gerando ainda mais informalidade, o que atesta a sua incongruência. Pessoas com idade superior a 50 anos, com baixa qualificação e reduzidas chances no mercado de trabalho são candidatos a receber benefícios assistenciais. Portanto, parece ser bastante racional não contribuir para a previdência, nessas condições, até porque o custo das contribuições para o trabalhador é elevado.

 

Atentos a essas situações, diversos Juízos passaram a decidir que o benefício previdenciário de valor mínimo, ou outro benefício assistencial percebido por idoso, é excluído da composição da renda familiar (Súmula 20 das Turmas Recursais de Santa Catarina e Precedentes da Turma Regional de Uniformização); e também que o benefício assistencial percebido por qualquer outro membro da família não é considerado para fins da apuração da renda familiar.

 

Assim, a patente falha na técnica legislativa instaurou intensa discussão em torno da interpretação desse dispositivo, a qual também será objeto de julgamento por esta Corte. A questão reside em saber se o referido art. 34 comporta somente interpretação restritiva – no sentido de que o benefício de que trata é apenas o benefício assistencial previsto na LOAS para os idosos – ou se pode se ele abarca outros casos, como o benefício assistencial para o deficiente físico e o benefício previdenciário em valor mínimo recebido por idoso.

 

De toda forma, isso não é fator impeditivo para que esta Corte, ante todos os fundamentos já delineados, constate a inconstitucionalidade (originária e superveniente) do § 3º do art. 20 da LOAS. E ressalte-se, mais uma vez, que a recente Lei 12.435/2011 não alterou a redação original do § 3o  do art. 20 da Lei no  8.742/1993, não impedindo, portanto, que o Tribunal declare a inconstitucionalidade desse dispositivo.

 

Uma vez declarada essa inconstitucionalidade, ante todas as convincentes razões até aqui apresentadas, poderão os Poderes Executivo e Legislativo atuar no sentido da criação de novos critérios econômicos e sociais para a implementação do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição. Assim, será necessário que esta Corte defina um prazo razoável dentro do qual o § 3º do art. 20 da LOAS poderá continuar plenamente em vigor. O prazo de dois exercícios financeiros, a vigorar até o dia 31 de dezembro de 2014, apresenta-se como um parâmetro razoável para a  atuação dos órgãos técnicos e legislativos na implementação de novos critérios para a concessão do benefício assistencial.

 

Proponho, dessa forma, que o Supremo Tribunal Federal, no bojo da presente reclamação, revise a decisão anteriormente proferida na ADI 1.232 e declare a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 (LOAS), sem pronúncia da nulidade, de forma a manter-se a sua vigência até o dia 31 de dezembro de 2014. Nesse ponto, ressalte-se, novamente, que a recente Lei 12.435/2011 não alterou a redação original do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993.

 

5. DECISÃO

 

Ante o exposto, voto no sentido de (1) julgar improcedente a reclamação e (2) declarar a inconstitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS, sem pronúncia da nulidade, (3) mantendo sua vigência até 31 de dezembro de 2014.

 

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