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VALTER DOS SANTOS
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Em sessão realizada no dia 12 de maio de 2021, a Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Justiça Federal em Sergipe (JFSE) declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade incidental das alterações estabelecidas pela Emenda Constitucional – EC nº 103/2019, no regramento da pensão por morte.
A segurada recorreu
contra sentença que julgou improcedente seu pedido de concessão de pensão por
morte, em razão de não ter sido reconhecida a qualidade de dependente com o
falecido na condição de companheira.
A sentença deve ser reformada.
1. QUALIDADE
DE SEGURADO / DEPENDÊNCIA
Qualidade de segurado do falecido
é incontroversa.
Os documentos apresentados pela
autora comprovam que ela mantinha união estável com o falecido, pois há a
escritura pública declaratória de tal fato lavrada em 6/11/2012, quase 9 (nove)
anos antes do óbito do segurado (19/1/2020, conforme anexo nº 4).
Segundo, ela figurava como sua
dependente na Bradesco Seguros (anexo nº 7), no plano funeral da OSAF (anexo nº
12, página nº 11) e no MPAS/SINPAS/INPS (anexo nº 6).
O fato da autora não ter
declarado o falecido como integrante de seu núcleo familiar no CadÚnico não
retira a eficácia daquelas provas, nem fazer desparacer o fato provado da
relação de união estável entre ela e o morto. Só comprova que aquela informação
não consta naquele banco de dados da Assistência Social.
Tal fato pode ter sido declarado
por ela quando do preenchimento dos dados do CadÚnico, que é feito perante
órgão do Município do local de residência da pessoa interessada, conforme ela
mesma afirmou em seu depoimento ter ocorrido, e ali não fora lançado por erro
do funcionário responsável, como pode ter sido sonegado. Mas não há prova nem
de uma, nem de outra coisa, além do que a autora é pessoa no mínimo analfabeta
funcional, conforme pode-se constatar pela assinatura que consta em sua
carteira de identidade (anexo n.º 8).
Apesar disso, ainda que ela não
tivesse direito ao amparo social ao idoso por conta de viver declaradamente com
seu filho (anexo n.º 25, p. 10) e de fato também com o falecido companheiro, o
primeiro remunerado com um salário mínimo e o segundo com remuneração média de
quatro salários mínimos (anexo n.º 15 a 19), ela tem à pensão por morte como
companheira do instituidor e será suficiente autorizar o INSS a fazer cessar o
pagamento do amparo social e descontar
da pensão os valores pagos a título daquele benefício assistencial por ela
indevidamente recebido, pois isso restabelecerá a justiça no caso concreto
(equidade aret. 6º da Lei n.º 9.099/95).
2. DATA DE INÍCIO DE BENEFÍCIO
Quanto à data de início do
benefício (DIB), ela deve retroagir até a do óbito, pois o requerimento
(10/2/2020) foi feito menos de trinta dias depois daquele (19/1/2020).
3. RENDA MENSAL DE BENEFÍCIO
Como o óbito ocorreu em 19/1/2020
quando já estava vigente a Emenda Constitucional - EC n.º 103/2019, ela deveria
reger a pensão por morte aqui deferida, não fosse ela inconstitucional por
violação do princípio da proibição do retrocesso, que garante a manutenção do
patamar de proteção social já atingido pela legislação infraconstitucional
reguladora dos direitos assegurados pela CF/88.
Se a ordem social tem como
objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art. 194 da CF/88) e se a legislação
previdenciária desde há muito tempo garantiu a proteção especial da família (art.
226 da CF/88) via concessão de pensão pela morte daquele que lhe provê a
sobrevivência, a legislação posterior, ainda que uma emenda constitucional,
poderia suprimir tal garantia ou reduzi-la como fez a EC n.º 103/2019.
O que a EC pretendeu fazer foi
suprimir direitos previdenciários construídos ao longo de décadas para a
proteção de quem se vê sem sua fonte de subsistência primária, em razão de
evento inesperado, ao restabelecer a regulação sobre pensão por morte que havia
na Lei Orgânica da Previdência Social - LOPS, Lei n.º 3.807/60, e com
regramento sobre renda mensal ainda mais gravoso do que aquele, mesmo depois
dela ter sido revogada pela CF e pela Lei n.º 8.213/91. E, o que é ainda mais
esdrúxulo do ponto de vista da lógica do processo legislativo, disciplinando
inclusive percentuais de cálculo de renda mensal de benefício, questões
normalmente deixadas para a legislação complementar e ordinária.
Nada obstava – nem obsta – que se
aprove legislação propondo, por exemplo, que o cônjuge sobrevivente tivesse
direito a apenas parte da pensão, em razão de ter renda própria, ou vedar o
acúmulo de pensão com salários superiores ao teto dos benefícios do RGPS, pois
haveria razão econômica suficiente para tanto: garantia concreta de meios para
a própria sobrevivência sem o concurso do cônjuge falecido.
Mas reduzir drasticamente o valor
da renda mensal de benefício como o fez a EC n.º 103/2019 sem qualquer outro
parâmetro econômico (ex.: estado de empregado do dependente, nível de renda
etc.) é esvaziar o conteúdo da garantia constitucional na prática.
No caso da pensão por morte, o
art. 23 da EC determina que a renda mensal será "equivalente a uma cota
familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria recebida pelo
segurado ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade
permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais
por dependente, até o máximo de 100% (cem por cento)".
Isso é quase cópia do art. 37 da
Lei n.º 3.807/60: "Art. 37. A importância da pensão devida ao conjunto dos
dependentes do segurado será constituída de uma parcela familiar, igual a 50%
(cinqüenta por cento) do valor da aposentadoria que o segurado percebia ou
daquela a que teria direito se na data do seu falecimento fôsse aposentado, e
mais tantas parcelas iguais, cada uma, a 10% (dez por cento) do valor da mesma
aposentadoria quantos forem os dependentes do segurado, até o máximo de 5
(cinco)".
Ao invés de avançarmos na
proteção social, voltamos no tempo quase 60 anos, sendo que o Brasil de
2019/2020 é outro muito diferente daquele das décadas de 60 e 70 do século XX,
mais pobre e mais desigual, como é notório e comprovam os indicadores sociais
levantados pelo IBGE ("Síntese de indicadores sociais". Disponível em
https://biblioteca.ibge.gov.br /visualizacao/livros/liv101629.pdf. Acesso em
2/5/2021).
Na prática, o mecanismo de
cálculo estabelecido pela EC n.º 103/2019 é ainda mais regressivo do que aquele
que havia há 60 anos, pois ela determina que se levem em conta todos os
salários de contribuição do segurado instituidor, apurados desde julho/1994
(art. 26) e fixa percentual de renda mensal inicial de 60% (sessenta por cento)
daquela média como regra para todos os benefícios, inclusive a pensão por
morte.
Ora, simples cálculo aritmético
faz-nos concluir que a renda da pensão por morte que era de 100% (cem por cento)
"aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se
estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento" passou a
ser de 36% (trinta e seis por cento),
no caso de haver apenas a viúva habilitada, como nesta demanda, sem qualquer
consideração sobre a situação econômica de vida da dependente (ex.: empregada
ou não; beneficiária de aposentadoria ou não; idosa ou não etc.) que pudesse
justificar a redução absurda do nível de renda destinada ao seu sustento e ao
de sua família [ "(...) 4. Esses
parâmetros constitucionais são legitimadores de um tratamento diferenciado
desde que esse sirva, como na hipótese, para ampliar os direitos fundamentais
sociais e que se observe a proporcionalidade na compensação das diferenças.
5. Recurso extraordinário não provido, com a fixação das teses jurídicas de que
o art. 384 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e de que a
norma se aplica a todas as mulheres trabalhadoras". (RE 658312, Relator(a):
DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-027
DIVULG 09-02-2015 PUBLIC
10-02-2015)].
Sem mencionar a ampliação do
período básico de cálculo (PBC), que fatalmente reduzirá ainda mais o valor
efetivo a ser pago, pois quanto maior o período a ser levado em conta, maiores
as chances de ter havido variação de salário e menor tenderá a ser a média
obtida.
Não há a menor sombra de dúvida
que a alteração estabelecida pela EC em relação à pensão por morte conduz à
supressão concreta do direito e viola flagrantemente as instituições que o
Estado deve proteger, a garantia da “cobertura do evento morte” (art. 201,
inciso I, do CF/88) e a vedação do retrocesso, especialmente porque sequer se
poderia falar em aplicação da reserva do possível no caso das prestações
previdenciárias, pois elas têm fonte de custeio específica.
Sobre o tema, STF: "(...) A
QUESTÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL: RECONHECIMENTO DE SUA INAPLICABILIDADE, SEMPRE
QUE A INVOCAÇÃO DESSA CLÁUSULA PUDER COMPROMETER O NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA
O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197) – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA
IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO
EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA
DA TEORIA DOS
CUSTOS DOS DIREITOS:
IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE
DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO – A TEORIA
DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CARÁTER
COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO
PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS,
ESPECIALMENTE NA ÁREA DA SAÚDE
(CF, ARTS. 196, 197 E 227)... (...)". [(RE 581352 AgR, Relator(a): CELSO
DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 29/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-230 DIVULG 21-11-2013 PUBLIC 22-11-2013)].
Não se trata aqui de alocação
discricionária de verbas estatais para prover esta ou aquela despesa, mas de
verba vinculada ao pagamento de benefícios da Seguridade Social, custeada por
diveras fontes.
Tais fontes de custeio inclusive
são suficientes e superavitárias, conforme apurado pela "Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal destinada a
investigar a contabilidade da previdência social, esclarecendo com precisão as
receitas e despesas do sistema, bem como todos os desvios de recursos"
(sigla CPIPREV), cujo relatório final fora aprovado em 25/10/2017
(https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2093&tp=4. Acesso em
2/5/2021).
Conforme consta nas conclusões
daquele relatório:
"(...)
Assim, não se pode admitir, que
em momentos de absurda redução da atividade econômica, caracterizada por um
período prolongado de recessão que beira a depressão econômica, pretenda-se
impor à sociedade brasileira como solução à crise atual, a extinção e a redução
de direitos sociais necessários e imprescindíveis à mínima existência humana
digna".
Por esses pressupostos e fiéis
aos princípios fundamentais erigidos pela Constituição brasileira, é que nos é
imposto o dever de evitar retrocessos sociais incompatíveis com a ordem
jurídica vigente, pois se implementados importariam em relativização
inadmissível de garantias plenas da cidadania.
E é nessa perspectiva que a
CPIPREV o Senado Federal assevera que qualquer reforma constitucional que não
concilie estes princípios estará maculada pela inequívoca ofensa à ordem
constitucional e, como consequência, tida por inconstitucional.
(...)"
Por último, a EC violou o
critério atuarial que deve presidir a regulação das prestações previdenciárias
(art. 201 caput da CF/88), vulnerou a garantia da seletividade das utilidades
securitárias, já que sem os estudos atuariais suficientes e sem a cobertura
adequada de cada situação concreta (cônjuge/companheiro empregado,
cônjuge/companheiro desempregado, cônjuge/companheiro com grandes rendimentos,
cônjuge/companheiro sem grandes rendimentos, cônjuge/companheiro incapacitado,
cônjuge/companheiro capaz, cônjuge/companheiro idoso, cônjuge/companheiro
jovem etc.), haveria uma tabula rasa
previdenciária incompatível com os objetivos da República: construir uma
sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as
desigualdades sociais e promover o bem de todos (art. 3º da CF/88).
Assim, como as disposições da EC
n.º 103/2019 sobre pensão por morte são inconstitucionais, permanecem vigentes
as anteriores.
No caso, a renda mensal inicial
(RMI) da pensão por morte devida à autora deve observar o art. 75 da Lei n.º
8.213/91: "o valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do
valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se
estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento".
No caso, o falecido instituidor
recebia o auxílio-doença NB 628999563-8 quando morreu (anexo n.º 13, p. 7) e,
por isso, a renda da pensão deverá ser de 100% da RMB daquele benefício, pois
ele não foi intercalado com períodos de contribuição.
Por último, a pensão deve ser
implantada na modalidade vitalícia, sem data de cessação de benefício (DCB),
pois a autora contava mais de 69 anos de idade na data do óbito (anexo n.º 8)
e, por isso, incide no caso o art. 77, § 2º, inciso V, alínea "c",
item n.º 6, da Lei n.º 8.213/91, sem qualquer necessidade de consideração sobre
a constitucionalidade ou não das alterações introduzidas no RGPS via Medidas
Provisórias.
Amparado em tais fundamentos, voto por conhecer e prover o recurso,
reformar a sentença recorrida e:
a) de ofício, proclamar a prescrição das
parcelas do benefício vencidas há mais de cincoanos do ajuizamento da ação;
b) nos termos do art. 43, primeira parte, da Lei
n.º 9.099/95 e art. 1º da Lei n.º 10.259/2001,cominar ao réu a obrigação de:
b.1) implantar o benefício descrito no RESUMO DO
BENEFÍCIO DEFERIDO abaixo, noprazo de 15 (quinze) dias, como data de início do
benefício (DIB), data de início de pagamento (DIP) e renda mensal inicial (RMI)
ali especificadas, independente do trânsito em julgado desta decisão;
b.2) fazer cessar o benefício descrito no RESUMO
DO BENEFÍCIO A SER CESSADOabaixo, no prazo de 15 (quinze) dias, como data de
cessação do benefício (DCB) igual à data de início de pagamento (DIP) da
pensão, independente do trânsito em julgado desta decisão;
c) acolher o pedido formulado na inicial,
confirmar a cominação acima estabelecida, econdenar o réu a implantar, de modo
definitivo, o benefício devido à parte autora
(pensão
por morte);
d) julgar procedente a demanda.
A
autarquia deverá ser intimada a comprovar nos autos, no prazo de 15 (quinze)
dias, o cumprimento do preceito cominatório acima estabelecido, sob pena de
multa diária de de R$ 420,00 (quatrocentos e vinte reais), a incidir a partir
do 16º (décimo sexto) dia da sua intimação e até que se comprove o adimplemento
da obrigação de fazer.
Condeno o
réu ao pagamento das parcelas devidas da pensão por morte desde a DIB até o dia
anterior à DIP, descontados os valores pagos à autora a título de amparo social
ao idoso de NB 7021905883 desde a DIB deste último até a sua DCB, bem como de
eventuais outros valores comprovadamente (por documentos) pagos no mesmo
período decorrente de outra prestação previdenciária não acumulável.
Os
valores da condenação deverão ser acrescidos de correção monetária, incidente
desde o vencimento de cada uma das parcelas, e juros de mora mensais,
incidentes desde a citação; e deverão observar o Tema 810 do STF: a) a correção
monetária deverá ser calculada de acordo com o vencimento das parcelas
originalmente devidas, utilizando-se como índice o IPCA-E; e b) os juros de
mora serão devidos desde a citação, a observar o seguinte: i) até junho/2009,
regramento previsto para os juros de mora no Manual de Orientação de
Procedimentos para os Cálculos na Justiça Federal para a classe da ação; ii) de
julho/2009 e até junho/2012, 0,5% (meio por cento) ao mês de juros de mora
(art. 1º-F da Lei n.º 9.494/97, alterada pela Lei n.º 11.960/2009); e iii) a
partir de julho/2012, taxa de juros aplicada às cadernetas de poupança (art.
1º-F da Lei n.º 9.494/97, alterada pela Lei n.º 11.960/2009 e Lei n.º
12.703/2012); valores a serem estabelecidos no juízo de origem, após o trânsito
em julgado desta decisão.
Autorizo
desde já o INSS a descontar o saldo dos valores pagos do benefício de amparo
social ao idoso de NB 7021905883 diretamente da pensão por morte devida à
autora, caso as parcelas atrasadas desta última, a serem pagas via RPV, não
sejam suficientes para suportar todo aquele débito, respeitado o art. 115,
inciso II, da Lei n.º 8.213/91.
Sem
custas ou honorários advocatícios, pois a sucumbente foi a parte recorrida, não
a parte recorrente (art. 55º da Lei n.º 9.099/95 e art. 1º da Lei n.º
10.259/2001).
É como voto.
***
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